Apesar de tudo, jogos ainda são arte

Olívia Lobo Guerreiro
12 min readJan 18, 2019

Eu to tentando falar sobre videogames como arte desde que a Thais Weiller publicou “Jogos Não São Arte” (texto que você provavelmente deveria ler), e eu queria muito elaborar um contra ponto pra mostrar o quanto eu discordo do seu ponto, mas, no final das contas, depois de 2 anos de deliberação, eu noto que ela está certa… Mais ou menos.

Acredito que o problema principal com o texto da Thais seja que ela está apontando o dedo pra coisa errada, e todas as respostas que eu pensei em dar pra esse texto até agora também estaria fazendo apontamentos pras coisas erradas.

Ela culpa a comunidade artística de ter destruído a arte, e de ser incompetente com relação a não saber o que arte se quer significa. Ela advoga por um separatismo dos jogos e da “arte” porque quando criticados com as artes “tradicionais” videogames são colocados sempre como inferiores e arbitrariamente comparados com obras que a elite artística já tomou pra si como parte do seu cânon.

O problema dessas afirmações existe no fato de que a “elite artística” não é simplesmente “artística”. Ela é uma elite política e econômica que se interessa exclusivamente em manter o seu poder político e econômico ao detrimento de qualquer outra necessidade humana. Acho que faltou um pouco de marxismo nessa crítica, e agora que eu fui iluminada pelo anarco comunismo e pela esquerda radical eu posso trazer pra essa crítica o complemento que eu estava precisando pra que ela fizesse sentido.

Nesse artigo nós vamos discutir arte nos termos do seu objetivo, eu eu vejo como um “alimento da alma” ou uma “necessidade subjetiva” de conexão com o espírito e com as pessoas ao seu redor. É impossível descrever o que arte é, mas eu me sinto confortável o suficiente pra dizer pra que ela serve.

Todos os problemas da arte vem do estado de hierarquia política que busca nela, não esse suprimento de uma necessidade interna de expressão e conexão com os demais seres vivos, mas aquisição de status social e troca de capital social. E isso não é uma questão de integridade estética (seja lá o que isso significa) e sim de consciência de classe, e é um assunto que precisa ser discutido dentro da moldura da discussão de classe.

Mas eu vou admitir que isso não é fácil. Comunistas estatais, soviéticos, leninistas e marxistas em geral tendem a ter uma péssima fama em discutir arte pois não era claro no século XIX e no início do século XX qual era o valor da arte pra classe trabalhadora. Justamente pelos motivos os quais a Thais revela no seu texto: A arte normalmente é usada como moeda de capital social e ostentação de status, não expressão do povo.

Arte normalmente era vista por marxistas tradicionais como um capricho das classes dominantes e completamente irrelevante pra vida do proletariado. Mas o que Marxistas fracassavam em ver é que a arte não é simplesmente uma moeda de troca para a masturbação intelectual mútua entre as classes dominantes discutindo entre si “o que é arte”. Arte é uma necessidade humana.

Os primeiros homens brancos e ricos a compreenderem e documentarem a necessidade humana pela arte provavelmente foram Carl Jung e Joseph Campbell, que compreendiam a expressão artística e a apreciação estética como algo que supria necessidades inconscientes da alma, relacionadas ao bem estar espiritual. E essas expressões e apreciações, de acordo com evidência arqueológica, existiam desde os primórdios da humanidade, inclusive entre neandertais, milhares de anos atrás.

Quando classes dominantes começaram a surgir dentre as tribos humanas sedentárias, primeiro com nobrezas e depois com a burguesia, essa forma de expressão da alma foi roubada por essas classes para tomar parte em formas de controle das populações, primeiro com religião organizada e depois com a “classe artística”.

O Dadaísmo, como a Thais falou, realmente tentou quebrar a arte. Mas em 1918, quando a maior parte do movimento estava em Berlim, Dadaístas, quando questionadas se o que elas faziam poderia ser considerado arte, respondiam que isso dependia de se o novo mundo onde essas obras existiram sendo exibidas pertenceria à classe trabalhadora. Muitos membros do dadaísmo também faziam parte de partidos comunistas ao redor da Europa, e essa foi a época que o movimento se tornou explicitamente político.

Na década de 20, entretanto, muitas artistas do dadaísmo estavam migrando para o surrealismo, que para elas parecia muito mais acomodada para servir os princípios de “suprir as necessidades da alma”. Mas sendo um movimento menos diretamente confrontoso do que o Dada, este também foi dominado pela burguesia e pela aristocracia como comodidades. Não é de se surpreender, portanto, que o mais famoso dos artistas surrealistas, Salvador Dali, era literalmente um fascista apoiador do Eixo.

Um grupo diferente de surrealistas, entretanto, se via desconfortável na situação de não saber se a sua obra era feita pra classe trabalhadora ou pra classe dominante. Este grupo talvez tenha sido melhor representado por André Breton, um poeta francês que escreveu o Manifesto Surrealista e várias vezes tentou apelar para que o Partido Comunista da França aceitasse a sua associação. As suas cartas foram dramatizadas no filme documentário “Europa Depois da Chuva”, mas infelizmente eu não consigo achar nenhuma versão legendada em português do filme. Quem não tiver problema com inglês, cá está o link.

Breton entendia que se o comunismo não compreendesse as “necessidades subjetivas” da população, ele simplesmente criaria novos tipos de alienação. O capitalismo e as monarquias já eram especialista em vender propaganda como arte, e o comunismo queria fazer o mesmo sob a justificativa de empoderar a classe trabalhadora para lutar contra a burguesia. Mas afim de que essa classe lutaria sem compreender quem elas mesmas são, interiormente? Afim de que essa classe lutaria sem a possibilidade de aproveitar sua liberdade em satisfação espiritual?

O que o surrealismo comunista compreendia que essas outras entidades parecem ignorar é que não foi o Dada que matou a arte. Foram as classes dominantes que a escravizaram, e o Dada e o Surrealismo Comunista tentaram libertar a arte e entregar ela de volta pra quem ela sempre deveria ter pertencido: Ás almas da raça humana. Ao povo e suas necessidades mais íntimas.

Mas sobre quem a gente aprende na escola? Dali ou Breton?

Durante a guerra fria, propaganda anti comunista nos impediu de ouvir as vozes de artistas comunistas, e só ouviu as vozes daquela arte que servia aos propósitos da classe dominante, de ostentar poder e controlar as massas.

O objetivo de Breton e várias outras pioneiras da arte moderna de forma geral era criar arte que fosse impossível de ser mercantilizada. Na verdade a não-mercantilização da arte tomou uma curva interessante no Brasil porque ela foi mercantilizada de qualquer jeito, só que por liberais em vez de fascistas, que fizeram uma “semana da arte moderna” em 1922 sob o financiamento do governo do estado de São Paulo.

O principal ponto que eu queria fazer contra o texto da Thais 2 anos atrás é que o governo precisa reconhecer videogames como arte para que a mídia seja legislada de acordo, assim como acontece no cinema ou como aconteceu em 1922.

Advogar pela separação de uma forma de mídia de expressão como sendo diferente de “arte” tem sérias implicações legais que poderiam impedir jogos como Toren, que dependem das Leis de Incentivo à Cultura, de existirem. E se você se importa com o bem estar do desenvolvimento de jogos, principalmente em solo brasileiro, eu acho um pouco problemático sair por aí falando que jogos não são arte. Já pensou se o ministério da cultura ouve isso e resolve cortar o apoio financeiro pra galera que tá tentando lançar jogo nacional?

É importante, enquanto o capitalismo não for derrubado, que as instituições de governos liberais que “promovem” arte e cultura continuem a nos perceber como artistas, mesmo que o discurso por trás dessas legislações fique bastante irritante no meio da academia elitista branca heterossexual cisgênera.

Mas essas medidas ainda são liberais, e ainda servem, antes de tudo, para regular o mercado e servir os interesses DO PRÓPRIO MERCADO. Não das pessoas. Do mercado. Porque o mercado é uma criança mimada que não sabe se cuidar sozinha e precisa de um Estado liberal pra botar umas regrinhas e garantir que ele não se imploda. O mercado é a prioridade máxima do liberalismo. Qualquer outra coisa é secundária.

As leis liberais de incentivo à cultura servem o objetivo principal de: melhorar a identidade cultural do país ou região e atrair investidores para que estes criem mercado ao redor da arte. Arte sob o capitalismo não é um suprimento das necessidades da alma. É um produto que há de ser negociado e vendido.

Quando o governo cria programas de disseminação artística ele adora dizer que é sobre as pessoas se expressarem, mas se esse fosse realmente o objetivo, os governos já teriam ido à falência. O objetivo é criar trabalhadores que sirvam os objetivos da burguesia de ostentar o seu poder ou de acomodar a classe trabalhadora e efetivamente continuar mantendo as engrenagens da alienação rodando.

Oficinas de escrita sob o capitalismo, por exemplo, não te ensinam expressão de ideias e como suprir as suas necessidades subjetivas e as necessidades subjetivas das suas camaradas. É sobre como fazer uma história em uma estrutura que venda. Eu mesma estou passando por isso dentro do curso de Produção de Áudio e Vídeo do Instituto Federal do Paraná e é DOLOROSO.

Eu sou uma escritora, e estou bem familiarizada com estrutura narrativa e argumentativa e todas as teorias burguesas envolvidas nestas. Quando a minha professora de roteiro diz que a gente precisa desenvolver essas formas de narrativa pra poder vender os nossos roteiros, e não para expressarmos nossas necessidades subjetivas, é quando eu sou mortalmente lembrada de que o liberalismo controla toda a minha produção independente de eu querer tomar parte dele ou não.

Para o capitalismo, arte não tem valor a não ser monetário. Todo trabalho que não resulta em dinheiro é descartado como “hobby”, e pessoas que não tem total consciência de classe acabam rejeitando o termo da “arte”. Não pela arte em si, mas pelo sequestro dela pelas classes dominantes, pelo capitalismo, e pelo mercado.

Thais diz que jogos são experiências, e portanto mais legais e mais importantes do que arte e que a gente como desenvolvedoras e estudantes de jogos não devemos tentar nos colocar dentro da caixinha das artes tradicionais.

Mas essas caixinhas não foram criadas “pela arte”. Elas foram criadas pela aristocracia, e revendidas pela burguesia. Não é a arte o problema. É o capitalismo.

Arte é o suprimento da alma. A comida do espírito. O sentido da vida. Ela não tem nada a ver com te fazer pensar alguma coisa, ou te fazer sentir alguma coisa, ou te fazer mudar de ideia sobre alguma coisa. O que a Thais descreve como experiência é o que Jung, Breton e Campbell descrevem com arte. E não é culpa da arte que ela foi escravizada e prostituída para as masturbações mentais (e literais) de pessoas ricas. É culpa das estruturas de poder, e atualmente do capitalismo.

Pyotr Kropotkin fala sobre como a arte (e a ciência, que para ele também entra nas necessidades subjetivas da alma, e é uma junção perfeita pra falar sobre videogames) deve ser tratada dentro de uma sociedade anarco comunista. Ela não deve ser um objeto de lucro social ou monetário. Ela deve ser, como eu já repeti várias vezes aqui, o alimento da alma, e ser equilibrado com o trabalho mecânico para que isso aconteça.

O exemplo dado no livro A Conquista do Pão é: se um trabalhador deseja muito se tornar um pianista clássico, ele deverá participar do trabalho da manufatura de pianos com as suas demais camaradas, e assim, conseguindo ganhar todo o fruto do seu trabalho para si próprio ele teria o piano tão desejado, e poderia trabalhar com seus demais camaradas para criar música para esses pianos e tirar satisfação do trabalho artístico em conjunto, sem as pressões do lucro ou da produtividade incessante.

Estúdios de videogames independentes são bons exemplos de como o trabalho de uma cooperativa anarco comunista pode funcionar. Esses estúdios, consistindo de não mais do que 10 pessoas, raramente tem cargos superiores e subordinados, e todas recebem o valor acumulado do seu trabalho, seja como contratantes ou publicando independentemente. Criando antes pelo bem de criar e depois pela possibilidade de lucro.

O estúdio que criou Dead Cells, Motion Twin, se descreve como uma “cooperativa trabalhadora anarco sindicalista” onde ninguém recebe mais do que outra pessoa, o lucro é dividido igualmente entre todas as trabalhadoras, e todas as decisões são tomadas de forma democrática e horizontal, com sistemas de eficiência implantados para impedir discussões redundantes de acontecerem e simplesmente fazer a porra dos jogos.

Enquanto isso, estúdios AAA e mobile são a principal definição do quanto o capitalismo tira qualquer semblante de criatividade de todas as artistas que estão por lá.

Se o objetivo da arte é alimentar a alma, a maioria dos jogos AAA e Mobile não podem ser considerados arte. As condições de trabalho nesse tipo de empresa em países com leis trabalhistas questionáveis (Estados Unidos, China e Coréia do Sul, por exemplo) são deploráveis comparadas com as condições de outras profissionais de TI. Trabalhadoras nesses espaços são constantemente abusadas por suas chefes (principalmente se forem mulheres ou pessoas negras, basta procurar qualquer escândalo envolvendo a Blizzard ou a Riot) e são obrigadas a trabalhar horas extras sem remuneração (Rock Star, Telltale Games). Trabalho sob essas empresas é escravidão.

Inclusive, eu acredito que o artigo Trabalhe Como Um Gato seja especialmente importante pra quem trabalha no mercado AAA e mobile.

E mesmo depois de tudo isso. O objetivo dessas empresas é lucrar, não fazer arte. Nos últimos 5 anos na verdade nós temos visto uma rápida queda na qualidade dos jogos AAA pois cada vez mais as empresas se sentem no direito de abusar as desenvolvedoras e a sua clientela. Edições limitadas de edições limitadas, DLCs, jogos incompletos e cada vez mais caros e todas as mecânicas de vício e apostas desreguladas que você puder imaginar serão forçadas nos produtos ao detrimento do valor artístico da obra. Com o objetivo de arrancar dinheiro das e criar dependências nas suas consumidoras.

Os jogos serão picotados, desequilibrados e deliberadamente mal feitos para aumentar os lucros e criar o maior número de clientes viciadas e complacentes possível.

Se o objetivo da arte é alimentar a alma da artista e da apreciadora, eu não tenho como, em boa consciência, chamar o que o mercado AAA e Mobile fazem de arte. Estas empresas não buscam alimentar a alma, mas se alimentar dela. Destruindo as famílias e vidas sociais das desenvolvedoras que ficam dias sem dormir pra entregar o jogo na hora, e destruindo as famílias e vidas sociais das suas clientes mais vulneráveis às manipulações do mercado de jogos.

Se você quiser saber mais sobre a toxicidade do mercado de jogos, qualquer vídeo do Jim Sterling vai te ajudar a arrumar esse contexto.

O mercado AAA e Mobile realmente não faz arte. Eles fazem ferramentas de alienação. Quem faz arte é a Motion Twin, a Ninja Theory, e a sua amiga que faz joguinhos bobos no Twine e bota de graça no itch.io.

Detroit: Become Human não é arte. Lesbian Spider-Queens of Mars é.

E o mundo dos videogames, da arte, e dos seres humanos em geral está precisando urgentemente de uma revolução comunista.

Amo vocês, camaradas. E não se preocupem que logo ela chegará.

Enquanto isso, considerem me dar uma força no Catarse ou no Paypal. Cada centavo ajuda.

Originally published at feliciagd.com on January 18, 2019.

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