ARQUIVO — Compilação sobre violência lúdica

Olívia Lobo Guerreiro
20 min readNov 25, 2018

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Essa é uma compilação de dois textos sobre violência lúdica postados originalmente em https://feliciagamingdiary.wordpress.com/

Agência E Violência Dentro do Círculo Mágico

Vamos falar de problemáticas de Design?

Você já deve ter notado que videogames tem uma tendência bastante… violenta. O tempo todo nós estamos atirando, assassinando e pulando nas cabeças dos nossos inimigos. Até o simples ato de desfazer uma linha de crochê é, por definição, um ato de violência no contexto de Kirby’s Epic Yarn.

Porque isso acontece?

Começando pela pergunta mais básica e mais confusa: O que é violência?

Mike Rugnetta, nesse vídeo maravilhoso, define violência como a ação de um indivíduo de usar a sua força para negar a autonomia, a agência ou as escolhas de outro indivíduo. É claro que através dessa definição, jogos podem ser interpretados como sendo atos de inerente auto-violência, tal qual Anne Bogart define o teatro como sendo uma arte inerentemente violenta, e os atores como sendo heróis de guerra que trabalham com essa violência infligida pelos seus diretores para gerar beleza.

Game designers, por esse ponto de vista, podem ser vistos como inerentes violadores, bem como os diretores de teatro. Mas eu gostaria de fazer uma distinção bastante importante aqui pelo bem do resto dos argumentos: Violência não pode ser auto-infligida por que quando uma pessoa em todas as suas capacidades mentais decide se causar dor, sofrimento, machucados ou mesmo limites de comportamento, esta parte da sua própria habilidade de escolher. A violência acontece quando você não tem escolha se vai sofrer tais limitações ou não.

Para que jogos aconteçam, as jogadoras tem que querer jogá-los. Jogadoras que são forçadas a jogar qualquer jogo que seja, estão sofrendo de outro tipo de violência que nada tem a ver com a arte de jogar ou de criar jogos.

Quando trazemos a discussão de “jogos violentos” estamos falando sobre quando a violência ocorre dentro do círculo mágico, onde agentes fazem o seu melhor para inibir as possibilidades de agir de outros agentes. Mas aí a filosofia dessa questão fica extremamente delicada.

O que compõe um agente? Quando o tabuleiro, o dado, as cartas ou o computador deixam de ser simples objetos e se tornam agentes ativos? E isso quer dizer que jogos como pega-pega são, por definição, violentos?

Bom, antes de chegar nas perguntas existenciais sobre pega-pega, vamos definir agente. E se eu tiver falando merda que algum outro acadêmico já explicou melhor, me avisem, poque essa ideia literalmente acabou de brotar na minha cabeça as 01:30 da manhã, e eu honestamente não sei se confio nas minhas faculdades mentais essa hora da madrugada.

a·gen·te
(latim
agens, agentis, que produz efeito, ativo, forte)

adjetivo de dois géneros
1. Que opera. = ATIVO ≠ PACIENTE, PASSIVO
substantivo de dois gêneros
2. O que opera ou é capaz de operar. ≠ PACIENTE
3. Pessoa ou empresa que promove negócios alheios.
4. Causa, princípio.
5. Autor.

Segundo o nosso bom amigo dicionário, sempre nos ajudando nas nossas empreitadas filosóficas, nós podemos assumir com certa segurança que agentes são entidades que ativamente iniciam uma corrente de operações dentro do jogo. Então, por exemplo, um jogador de xadrez é um agente por ele é capaz de iniciar uma corrente de operações (que nesse caso é uma operação só) de mover tal peça para tal espaço, e quem sabe, destruir uma peça inimiga no processo.

E essas operações não precisam ser realizadas pelo agente. Os próprios sistemas e regras do jogo geram reações automáticas a partir dessas ações que não fazem com que o jogo em si possa ser considerado um agente. O agente só tem que iniciar essas operações.

Num jogo de xadrez digital, não sou eu fisicamente movendo minhas peças, é o computador, mas só porque eu ordenei que a peça fosse movida. Eu iniciei a ordem de operações que move meu cavalo e destrói aquele seu peão fedido. Eu sou a agente, não o computador.

Mas, vamos deixar o xadrez um pouco de lado e partir pra um Final Fantasy.

Eu pressiono o comando de atacar no menu que está aberto na minha tela, e o meu menino andrógino com cabelo espetado de escolha ataca um dos cactos ambulantes engraçados com a sua katana-motocicleta. Eu realizei uma ação — eu ativei uma corrente de operações matemáticas e mecânicas de jogo — e a reação do cactuer foi, levar dano.

Mas aí é a vez do Cacteur, e nós encontramos um problema aqui que consiste em: Não tem ninguém jogando comigo! Portanto, não tem ninguém controlando o Cacteur para competir comigo e tornar essa dinâmica de combate interessante — ou se quer funcional.

Mas… Existe. Isso é uma competição, e uma inteligência artificial está dando o seu “melhor” para impedir minha vitória. Não é a minha ação que compele o Cacteur a contra-atacar, mas ele próprio quem ataca por sua própria vontade. O próprio jogo inicia sua corrente de ações que independe da entrada de qualquer usuário humano afim de criar desafio. E nesse momento, o computador, o celular, ou mesmo o “tabuleiro”, se tornam agentes.

Maneiro, certo? Mas quando se trata desse tipo de agente, é errôneo assumirmos que o jogo todo quer que nós percamos. Na realidade o contrário deve sempre acontecer: Jogos devem assegurar o entretenimento das jogadoras, e não a derrota das mesmas. O agente, nesse caso, não é o jogo todo, e sim um pedaço dele.

Nós podemos ver esse tipo de agente artificial como sua própria forma de existência — um construto — criado pelo próprio jogo. Esse construto é sua própria entidade, que para a sua própria percepção de realidade, não existe nada além da competição. A capacidade competitiva desse construto é controlada pelo jogo em si para garantir que hajam chances reais de vitória, derrota, aprendizado e/ou divertimento.

Vamos chamar esse agente construto de AI (que é uma sigla pra inteligência artificial). E AI pode variar tanto desde aquele Cacteur que provavelmente destruiu meu menino andrógino com cabelo espetado, até aquele tarrasque faminto que resolveu atacar a cidade natal do seu personagem de D&D ou o “Mito” em jogos da série Arkham Horror Files, que representa nada mais do que o tecido da realidade sendo rasgado por criaturas éldricas.

Então nós temos dois tipos de agentes: a jogadora e a AI. Mas vocês notaram a palavra chave que eu usei no penúltimo parágrafo?

Competição.

A AI só existe para suprir as necessidades de uma dinâmica competitiva dentro do seu jogo.

Jogos competitivos quase sempre envolvem algum tipo de violência, mesmo que os competidores oponentes sejam AIs. E essa violência surge a partir do momento que o jogo dá ferramentas (mecânicas) para que uma agente impeça o progresso da outra.

A única exceção que eu conheço à essa regra, são jogos de corrida onde é ilegal bater no amiguinho. Mas sim, até pega-pega entra nessas noções de violência.

Mas essa definição não ajuda em nada, ajuda? Roubar a bola do time adversário num jogo de futebol, pelo que estamos discutindo aqui, é violento. Mas reconhecer que essa violência existe é tão útil quanto escrever um artigo de 1607 palavras sobre como seis e meia-dúzia são a mesma coisa. Apontar a violência inerente do pega-pega ou do jogo de futebol é completamente irrelevante pra discussão sobre “violência nos jogos”.

Pra tornar essa tese toda verdadeiramente útil nós precisamos afunilar nossos pontos de vista. Pra isso eu proponho a seguinte terminologia pra gente poder focar mais a nossa discussão:

A maioria das violências dentro dos círculos mágicos se refere exclusivamente ao mundo criado dentro desse círculo. Roubar a bola do time adversário num jogo de basquete nada tem a ver com as violências que pessoas sofrem no mundo real e material. Eu gostaria de chamar essas mecânicas de violências lúdicas. E elas são completamente inofensivas. Colocar o X no centro do tabuleiro de um jogo da velha pode tirar o poder do meu oponente de ganhar, mas não existe nenhuma conotação narrativa na minha ação que torna ela meramente semelhante aos tipos de violência que ocorrem na vida real.

Um sociólogo meio estúpido, mas com algumas ideias interessantes, chamado Slavoj Zizek fala sobre dois tipos de violência que existe no mundo: Violência Subjetiva, que se trata do cara que te para na esquina e te ameaça com uma faca, ou com os soldados de Israel jogando bombas na palestina; E Violência Objetiva, que é a sistemática, que impede pessoas queer de terem empregos, mulheres de ganharem o que merecem, e garantem que pessoas negras vão ser sempre revistadas primeiro.

Jogos muitas vezes simulam esses tipos de violência. Como no caso de jogos elas acontecem dentro dos confinamentos da realidade do Círculo Mágico, não é violência de verdade, então acho útil expressar com ênfase o fato de que são simulações.

Um bom exemplo de um jogo que trata de simular violência objetiva é Banco Imobiliário; Um bom exemplo de um jogo que trata de simular violência subjetiva é Street Fighter; E um bom exemplo de um jogo que trata de ambos e mais um monte de outras coisas é Spec: Ops The Line.

A partir daqui nós temos que mudar a pergunta que fizemos no começo do post. Em vez de perguntar porque jogos são tão violentos, devemos perguntar, porque tantos jogos simulam violências que existem no mundo real e afetam a vida das pessoas negativamente?

Welp, a resposta pra isso vai ficar pra outro post.

Amo vocês.

Nota: Eu vivo falando em Círculo Mágico e nunca explico pra vocês o que significa, né? Desculpa. Enquanto eu não esclareço tem livros da Katie Salen e do Johan Huizinga que você acha relativamente fácil e explica que merda é essa. Mas resumindo bem porcamente, são as delimitações que separam seu jogo do mundo real, como passagem de tempo, regras, personagens, cenário e delimitações físicas.

Violências Lúdicas e Simulação de Violências Reais

Da última vez nós discutimos sobre o que é violência dentro de um jogo, o que são agentes, e como eles se interligam. E chegamos a uma semi-conclusão de que a pergunta “porque jogos são tão violentos”, por mais que não seja falaciosa, é mal direcionada.

Violência dentro de um jogo pode tomar várias formas que podem ou não ter a ver com violências nocivas que podemos ser obrigadas a enfrentar no mundo real.

É sobre isso que quero falar hoje. E sobre como essas violências es assemelham ou se diferenciam quando se manifestam em reinos lúdicos diferentes.

Pra entender esse post você vai ter que ler o seguinte:

Que tipo de violências costumamos encontrar em jogos?

A mais comum delas é a violência lúdica. Roubar a bola do adversário, marcar o quadrado do meio antes do adversário, pegar o adversário e impedir que ele se mova pelo resto da brincadeira.

Ninguém reclama de violência lúdica. Ela é inocente e natural. Animais de outras espécies também tomam parte dessas violências, segundo os biólogos pra aprender a lutar enquanto ainda são filhotes. Mas ainda vale a pena se estudar esse tipo de dinâmica.

O “problema de verdade”, entretanto são as violências simuladas. E no último post nós falamos por cima sobre os dois tipos de violência que existem no mundo real segundo Zizek: Objetiva e Subjetiva. E ambas são simuladas em jogos.

Cada um dos reinos lúdicos trata desses três tipos de violência a suas próprias maneiras. Vamos dar uma olhada em algumas das maneiras mais conhecidas de lidar com a violência lúdica antes de começar o banho de sangue que vão ser as violências simuladas.

Violências Lúdicas

Na realidade é muito difícil falar dessas violências porque normalmente elas só fazem sentido em análises de caso a caso.

Porque tanta dificuldade? Essas violências não existem no mundo real. Apenas no mundo criado pelo círculo mágico.

Em tetris battle, as jogadoras tomam os papéis de violadoras uma da outra quando decidem jogar power-downs ou obstáculos nas sua adversária. E isso é inegavelmente uma ação violenta. Tá até escrito no nome do jogo — “battle”. Mas… Como essa batalha se assemelha de qualquer forma de violência no mundo real?

Bom… Não se assemelha. Violência lúdica é sempre um produto abstrato extraído da ideia de competição. Fora do mundo do jogo, esses obstáculos não significam nada. Fora do mundo do jogo, colocar o X no centro do tabuleiro do Jogo da Velha não significa nada. Fora do mundo do jogo, congelar o amigo no pega pega não significa nada.

A única coisa que esses jogos simulam são competição.

Existe uma nuance aqui, entretanto. Eu acreditava que esse tipo de violência era impossível de existir no reino emocional até esse domingo.

O Projeto Roda do Ano — que é um grupo de atividades espirituais neo-pagãs de Curitiba — nesse domingo, dia 23 de Julho de 2017, realizou algumas atividades durante o dia baseando-se no livro Mulheres que Correm Com os Lobos.

A primeira atividade foi a seguinte: Nos deram duas ferramentas, um balão de ar, e um palito de dentes. O homem que estava guiando a atividade simplesmente disse “ganha quem ficar com o balão cheio”.

O que nós criamos aqui foi um jogo emocional com elementos analógicos se baseando num conceito abstrato de competição: violência lúdica.

O objetivo da atividade era mostrar que, todomundo podia simplesmente não ter feito nada com o seu palito e todomundo podia ter ganho. Mas na mesma hora que as regras foram anunciadas, as participantes imediatamente começaram a estourar os balões umas das outras.

Por mais que estourar o balão da outra pessoa não tirasse ela do jogo, foi assim que foi interpretado por alguma pessoas, enquanto outras continuaram a batalhar mesmo sem o balão. Emocionalmente, a agência de algumas das jogadoras naquele dia foi inibida pela agência de outra jogadora.

E isso é, por definição, violento.

O que me faz imaginar o tipo de coisas que se pode fazer com violência lúdica dada criatividade op suficiente. Mas mesmo assim, mostra sua limitação como não podendo ser nada além de uma alegoria para competição.

Violências simuladas

Simulação da Violência Objetiva

Se a violência lúdica é a mais simples das três quando se trata de sistemas de jogo, a objetiva deve estar no meio.

Ás vezes a violência objetiva dentro do seu jogo aparece sem querer. A maioria das pessoas demora pra se tocar do porque as peças BRANCAS se movem antes das PRETAS no xadrez.

E torcer é um aspecto violento objetivo dentro de grande esportes pois ele existe não só pra motivar o seu time, como desmotivar o time adversário. E na grande maioria das vezes essa dinâmica espelha ideais nacionalistas, que também são inerentemente violentos.

Violência é parte da nossa cultura, e é apenas natural que essa violência acabe vazando pros jogos que fazem parte dessa cultura.

A maioria dessas simulações acidentais são sintomáticas de um problema maior. E vale a pena tirar os olhos do jogo em si, e olhar para o problema maior ao seu redor.

Eu acho muito mais interessante pro estudo do game design e da ludologia quando a simulação de violência objetiva é proposital!

This Is The Police! é um jogo que te coloca nos pés de um delegado de polícia corrupto, e usa seus sistemas pra explorar direitos trabalhistas, abuso de autoridade e racismo pelos olhos do opressor.

Jogos de contabilização são ótimos pra te colocar nos pés de uma entidade violadora objetiva — um opressor sistemático.

Esse tipo de jogo surge em uma variedade de formas diferentes. Darkest Dungeon, que é um jogo com muita violência subjetiva e um tema lovecraftiano muito óbvio, tem como tema principal a violência objetiva do capitalismo e do mercantilismo. Em Darkest Dungeon você contrata pessoas as quais você inevitavelmente será obrigada a explorar, matar e traumatizar para sempre pelo bem da sua companhia e do seu lucro.

O mais famoso desses jogos de contabilização onde você toma o papel do opressor é Monopoly, ou Banco Imobiliário. Pois nesse jogo, o vencedor já foi decidido nos três primeiros turnos, e o resto do jogo simplesmente simula como ascensão social dentro do capitalismo é praticamente impossível, e muito mais decidido por sorte do que por estratégia, vontade ou habilidade.

E é claro que a violência objetiva também acontece em reinos emocionais de forma proposital.

Criar um personagem élfico em Dragon Age não trará nenhuma consequência mecânica para o seu jogo exceto velocidade de movimento no jogo de mesa. Mas de repente você se verá nas margens de uma sociedade que te odeia tanto quanto te ignora.

Histórias de opressão social quase sempre fazem parte dos jogos modernos — desde The Last of Us até Final Fantasy VI — mas é nos LARPS que essa simulação emocional realmente brilha

Se você não conhece o LARP nórdico, passe a conhecer. As jogadoras sempre são colocados diante de uma distopia opressora, e tudo vale pra garantir a simulação mais próxima possível, é claro prezando pela segurança das jogadoras que usam “safewords” pra que a cena pare caso esteja indo longe demais pra ela. Mas essas cenas vão BEM longe.

Simulação de violências subjetivas

É aqui que as coisas ficam complicadas.

É isso que a maioria das pessoas querem dizer quando nos referimos a “jogos violentos”. É a simulação da violência subjetiva que preocupa nossos pais, políticos e juízes. Quase sempre porque esses jogos nos colocam no papel do violador.

Violência subjetiva é um assunto delicado, que, eu vou admitir, a maioria dos jogos trata como se fosse brincadeira ou nada importante que deva ser discutido com cuidado.

Eu posso estar errada, mas eu ACHO que nenhum jogo de guerra tem a indecência de colocar o jogador no papel de um nazista, e eu ACHO que não existe nenhum simulador de estupro. Mas as fantasias de masculinidade tóxica que jogos como God of War ou — pasmem — Dante’s Inferno fazem muita gente sentir que não estamos tão distantes assim de uma realidade onde um jogo tão hediondo assim pode ser real.

Outros jogos de violência grotesca como essa são Hatred e Manhunt. Jogos tão hediondos que eu preferia nem falar sobre. Mas existem jogos que subvertem o gore.

Until Dawn PODERIA ser uma dessas simulações de masculinidade tóxica, mas o jogo mostra o seu gore com a delicadeza necessária para que a violência faça sentido, e que você não romantize a violência e de fato passe a achar ela repulsiva.

Esses jogos terríveis de violência extremamente subjetiva, pessoal, e sangrenta, são, entretanto, a minoria. O que nós mais temos são histórias de guerra. Desde Call of Duty e Deus Ex até Futebol Americano e Xadrez.

A cultura européia foi criada ao redor da guerra. Europeus eram tão obcecados por guerra que fizeram outros povos entrarem em guerra apenas por proximidade.

O Futebol Americano, um ato de rebelião contra as regras tradicionais do Rugby, nada mais é que um jogo de conquista territorial por soldados servindo uma nação fictícia. E Xadrez, o jogo mais antigo e famoso da face da terra? Dois exércitos se degladiando.

A Europa, e eventualmente a america do norte, SEMPRE romantizou a guerra. E as pessoas só notaram que isso pode ser um problema pras crianças no início dos anos 2000 com o sucesso de Deus Ex e Medal of Honor. E mesmo assim nós nunca paramos de fazer jogos de guerra.

Guerra, querendo ou não, faz parte da cultura ocidental. Nada mais justo que trabalhar com ela na nossa arte. Mas muitas vezes nós acabamos romantizando a guerra, então alguns desenvolvedores tentam mostrar os horrores desse nosso hábito de descer bala uns nos outros.

O melhor e mais clássico exemplo disso é Spec Ops: The Line. Eu não vou dizer nada além disso porque é spoiler, mas eu recomendo. E o jogo saindo no mesmo ano que Advanced Warfare te força a cometer crimes de guerra, foi uma mudança de ponto de vista muuuito bem vinda.

Violência épica? Violência animada? ANIME FIGHTS. Não sei como chamar isso, mas é uma violência subjetiva um pouco absurda demais pra levar a sério. Não é um gorefest, não é uma guerra realista, e provavelmente tem poderes brilhantes e inimigos não-humanos. Quando se trata de boardgames e videogames, é isso que a gente tem. E é difícil de chamar de simulação porque é uma violência subjetiva apenas em conceito.

Ninguém no mundo real se teleporta na direção das suas armas ou luta contra dragões gigantes.

OU SERÁ QUE LUTA?

Esses são os jogos de fantasia onde você não desmembra seus oponentes com suas próprias mãos nuas, mas usa poderes ou armas legais pra barra de vira do oponente zerar e ele sumir do tabuleiro ou virar um ragdoll que provavelmente vai sumir depois ou reviver.

E tudo isso é muito simples de entender como esses jogos simulam violência subjetiva, certo?

Os gores usam tanto seus sistemas digitais quanto emocionais pra simular a violência. Jogos de guerra e de fantasia também podem acabar usando sistemas analógicos pra compreender essa simulação. E tudo isso se confere como violência porque, quando você não está impedindo outra jogadora de agir, você está impedindo uma inteligência artificial de agir, onde, por definição, acaba existindo violência.

A forma mais difícil de observar a simulação da violência subjetiva é em jogos amorzinho como Super Mario World ou Kirby’s Epic Yarn

Tadinho do bichinho com a lança ;-;

Mas ninguém liga porque, bom, é Kirby.

Ninguém liga pro Mario pulando na cabeça dos goombas porque, bom, é Mario.

Isso É violência subjetiva. Goombas e bichinhos com lanças são agentes dentro dos círculos mágicos criados pela Nintendo, e o seu objetivo como jogadora é prevenir esses pobres olhudinhos do direito de… EXISTIR.

Posso fazer um adendo extremamente off-topic?

Como que as pessoas se sentem bem esmagando goombas que não querem fazer nada de mal pra você, mas por algum motivo matar colossi em Shadow of The Colossus é ir longe demais? É a animação de morte que te faz lembrar que você é uma pessoa horrível por ter matado tantos goombas sem pensar antes? Seu assassino de goombas.

Mas quem liga, honestamente? A maioria das pessoas se quer questiona a violência inerente desses jogos ou vê qualquer problema nele. Pokémon é uma simulação de briga de galo, e acho que ninguém no mundo real apoia bigas de galo (exceto as pessoas q organizam, competem e apostam nesse negócio né).

Violência subjetiva emocional

Violência subjetiva não precisa envolver porrada. Mas quando se trata disso, normalmente as dinâmicas emocionais lidam melhor com a situação.

O final de Life Is Strange é sobre reconhecer sua responsabilidade perante certas violências que acontecem no decorrer do jogo e sua escolha de como lidar com essa responsabilidade. Inclusive se da pra gerar discussões bastante importantes sobre ética quando nós trazemos esse tipo de sofrimento, luta e competição pro lado emocional.

Claro que quando falamos de violência subjetiva em dinâmicas emocionais, ás vezes nós acabamos encarando o problema de: ferimentos só são canônicos em cutscene. Mas isso é assunto pra outra hora.

O assunto pra agora é:

Por que tanta violência?

Existem três argumentos por trás dessa pergunta. O primeiro argumento é o mais idiota e nem merece o próprio parágrafo: Violência é uma parte intrínseca da cultura ocidental e da cultura global pós-moderna. E violência vende.

Esse argumento é válido? Claro. Mas é preguiçoso e eu não to aqui pra ficar repetindo o discurso mais antigo da face da terra.

Argumento das Relações ludo-narrativas

Este argumento me foi introduzido por Samuel Gronseth, o apresentador de Games as Lit. 101 no seu video Why So Much Violence In Games?, que foi uma das inspirações pra este texto. E esse. E esse. E esse.

Gronseth parte do princípio de que jogos são sempre competitivos para argumentar que, mesmo os mais inocentes, apelam para dinâmicas violentas pra que interações lúdicas façam sentido em um contexto narrativo.

Todo jogo, segundo ele, precisa de estados — claros ou implícitos — de vitória ou derrota para se classificarem como jogos. E a forma mais clara de se apresentar estes estados dentro da grande maioria dos contextos narrativos é através da vida ou da morte.

Eu acredito que esse argumento é muito bem elaborado, mas no final das contas, falso se a sua definição de jogo for um pouco mais abrangente que isso. Apenas jogos exclusivamente digitais dependem de estados de vitória e derrota. Mas quase não existem jogos exclusivamente digitais. Jogos, pela visão que eu uso em todas as minhas discussões, existem para proporcionar experiências, não desafios.

Este argumento é útil, entretanto, pra entrar na cabeça da maioria das pessoas em relação a violência em VIDEOGAMES especificamente.

“okay, a gente tem que criar um desafio digital que vá bem com alguma história. Acho que a pira é criar um curso de obstáculos que nós vamos dar ferramentas pra jogadora poder conquistar.”

Se você faz o seu jogo assim… Nada contra, mas… Tudo contra. Jogos podem ser tão mais do que um curso de obstáculos.

Nem todo jogo que subverte a fórmula do curso de obstáculos é famoso, mas eu acho que Undertale e Life Is Strange foram populares o suficiente pra tirar pelo menos essa ideia específica da cabeça das pessoas.

Eu vou aproveitar pra indicar um jogo pra vocês, que tem interações digitais e emocionais, não é um curso de obstáculos e não tem estados de vitória nem de derrota, mas ainda trata de temas violentos.

Diaries of a Spaceport Janitor conta a história de uma zeladora/catadora de lixo de um espaço-porto que sonha em viajar pelas estrelas, mas acaba tendo que gastar todo o salário dela em remédios para transição hormonal. Custa 20 reais na Steam.

Argumento Da Interação Espacial

Esse argumento é muito mais interessante, e me foi introduzido pelo Christopher Franklin (dono do melhor canal de youtube de todos) no seu vídeo Errant Signal — Violence In Games. Que também foi inspiração pra este texto. E esse. E esse. E esse.

Eu não quero repetir o video. Ele está lá pra ser assistido por um motivo. Mas caso língua seja uma barreira séria, a versão resumida desse argumento é:

Jogos digitais são especialmente bons em simular duas coisas: Sistemas de informação / biblioteconomia. Ou conflitos espaciais. E sistemas digitais só são, quando não estão tentando criar conceitos abstratos de jogo, capazes de simular essas duas coisas.

E por mais que jogos “biblioteconomicos” (essa palavra existe? Gente, que horror. Temos que arrumar isso depois) ou, jogos de contabilização, como chamei antes, sejam interessantíssimos para algumas pessoas e criem grandes obras de arte como This Is The Police! ou marcos de sucesso de vendas como Sim City, não são a parte mais atrativa do reino digital. A parte mais atrativa é a simulação de espaços fictícios.

A simulação de espaços quase sempre envolve alguma forma de competição pelo controle desse espaço. E isso é muito comum principalmente em jogos analógicos como esgrima. Mas mesmo assim, o reino digital não costuma ser o melhor lugar pra simular combate porque, jogos digitais normalmente são lentos demais pra criar uma simulação satisfatória. E por mais que muita gente adore Dungeons and Dragons, eu durmo sempre que o combate começa.

Mas aí inventaram um negócio chamado computador. Que pega informações digitais e processa elas de forma muito mais rápida do que você consegue contar 1+1.

E essa é uma problemática bastante específica de videogames. Porque computadores oferecem uma vantagem que boardgames jamais terão: feedback imediato. E poucas coisas se aproveitam tão bem do feedback imediato quanto a boa e velha violência subjetiva.

Violência subjetiva ser tão comum no mundo dos videogames, inclusive em Mario, nada mais é do que uma consequência por avanços tecnológicos.

Quanto melhores os processadores foram ficando, mais rápido se tornou esse feedback. E quanto melhores se tornaram os controles, com a invenção do mouse e do D-Pad e eventualmente do controle analógico e do gatilho nos gamepads, entradas rápidas também se tornaram possíveis. Toda essa velocidade de entrada e retorno deixou a possibilidade de gameplay reativo cada vez maior.

The Dark Souls In The Room

Vamos tirar esse Dark Souls gigantesco da sala e tratar de que nem todo jogo de ação é violento e que videogames conseguem fazer bem mais do que só gameplay reativo.

Verdade. Dark Souls provou que combate lento e metódico pode ser tão divertido quanto combate rápido e metódico (Bloodborne) quanto qualquer simulador de tiro e porrada por aí.

Em Portal você é bem mais violada do que violadora. Em Need for Speed você não tem que atropelar ninguém. E Night in The Woods espera só que você ande por aí reencontrando seus amigos do passado.

Desde a popularização das touchscreens as pessoas tem realizado que gameplay reativo não é tudo que um videogame precisa ser. E na verdade vários BOARDGAMES ELETRÔNICOS CUZ THIS IS APPARENTLY A THING NOW tem sido lançados com grande sucesso!

E combate pelo combate já não faz mais tanto sucesso, com as pessoas esperando um peso emocional que só videogames conseguem trazer: através de narrativa roteirizada ou alguma forma nova de taticidade.

Pessoas dizem que devemos começar uma movimento pra tornar nossos jogos menos violentos, mas eu acho isso errado.

Nós devemos torná-los conscientemente violentos. Violentos de uma maneira que faça sentido e não seja apenas uma masturbação pela toxicidade masculina que era popular entre 2000 e o início de 2010.

E esse movimento já acontece. Até a Ubisoft tomou consciência do tipo de mensagem que a sua violência passa, e recontextualizou ela de uma forma infinitamente mais positiva em Watch_Dogs 2.

O jogo de ação grande que saiu essa semana na realidade é um jogo de horror sobre viver com esquizofrenia (Hellblade). E joguinhos pequenos como Night In The Woods e Undertale estão ficando cada vez mais populares e moldando as novas mentes que entrarão agora no mundo do desenvolvimento.

E se você vai fazer um jogo de ação idiota, pelo menos se reconheça como um desenvolvedor de um jogo de ação idiota e seja tão ridículo quanto a trilogia original de Devil May Cry, Bayonetta, ou o novo Doom. Não tenta se fazer de inteligente, CALL OF DUTY.

A-hem.

Seja como for, retratar violência nos nossos jogos não é necessariamente uma coisa ruim. Desde que com algum nível de consciência sobre que tipo de violência você está falando, e que mensagem você acaba passando com isso.

Não acredito que tive que escrever 7173 palavras pra chegar nesses finalmentes.

E eu já to com outra coisa planejada tipo “o que é um eurogame” e eu quero morrer.

Soma mais umas 3 reviews, 2 catálogos de jogos e eu não sei se eu vou estar de pé mês que vem.

Mentira vou sim. Nem é tanto trabalho assim. Só continuar lutando contra a depressão e a gente segue em frente.

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Amo vocês!

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