
ARQUIVO — Dark Souls Não É Tão Difícil
Eu não sou o tipo de pessoa que fica por aí nos Reddits e nos fóruns de videogame procurando discutir os últimos lançamentos da indústria. Esses ambiente já são suficientemente nocivos para quem já faz parte deles faz tempo. Pra uma mulher trans que acabou de chegar seria a mesma coisa que se jogar numa jaula de hienas famintas: Desnecessário.
Mas sempre que eu converso nos poucos círculos gamers que eu possuo, há uma atitude em relação a Dark Souls que eu só consigo entender como fazendo parte do machismo que existe no mundo dos jogos e de uma suposta “meritocracia” que divide “gamers de verdade” e “casuais”.
Porque a maioria das pessoas não tem interesse em jogar Dark Souls? Ele é muito difícil. Um amigo meu uma vez me falou que não entende “como alguém pode querer jogar um jogo difícil só por ser difícil?” Todomundo fala sobre o quanto você vai morrer jogando Dark Souls, de novo e de novo, e até o nome da edição especial do primeiro jogo se chama “Prepare to Die”. “Prepare-se para morrer”.
Entretanto, tudo isso não passa de uma barreira psicológica. Um estigma social que foi colocado ao redor da série pelos fãs e pela desenvolvedora. Dark Souls não é tão difícil assim.
Quando você diz para ume des famigerades “gamers hardcore” que você não consegue jogar Dark Souls a única coisa que vão te dizer é “é porque você não é hardcore o suficiente”, “melhore”, e o famoso “haha, git gud!”. Na mente dessa fanbase formada de homens cis “hardcore” que “jogam videogames de verdade”, Lordran, Drangleic, Lothric e etc são terras de masculinidade onde homens são homens, mulheres são homens, e a sua virilidade é medida pelo dano das suas espadas.
E notem que eu disse “dano das suas espadas”. Se você tiver coragem de vasculhar a fanbase, encontrará que usar magia para ultrapassar seus obstáculos no jogo é considerada uma tática para “fracotes” e que “você não está jogando direito” por te dar uma vantagem tática na maioria das fases dos dois primeiros jogos, mesmo não conferindo nenhuma vantagem significativa no PVP e nem em alguns chefes como o Kapra Demon. Mesmo assim, altos níveis de int na sua personagem são motivos pra tentarem te denegrir como “bichinha”.
O machismo é tão grande, na verdade, que alguns fãs não conseguem acreditar que uma personagem trans pode existir em uma série tão cheia de machesa. Fãs que fizeram questão de aparecer aqui pra dizer o quanto eu tava errada e que o jogo favorito deles não podia ter uma travesti!
É um machismo tão grande que existe na comunidade desse jogo que mesmo homens que não tem interesse em jogá-lo (ou jogam usando personagens mágicos) tem sua masculinidade questionada.
Mas eu tenho três notícias sobre o jogo que podem ser muito ruins pros machistas, mas boas pro resto das pessoas:
1 — Não existe nada inerentemente masculino em dark souls
Eu sei que algumas feministas acreditam que Dark Souls seja um clássico exemplo do machismo tomando conta do mundo dos jogos, mas eu discordo veemente.
Não há objetificação, não há generificação (essa palavra existe?), envolve temas que foram abordados por jogos tanto ‘masculinos’ quanto ‘femininos’. Dark Souls é O jogo mais neutro de gênero que já existiu no mercado de viodeogames AAA. Talvez no futuro eu escreva mais sobre isso.
E eu preferia que um homem viesse falar aqui falar isso no meu lugar, mas masculinidade não é só sobre ser o mais forte, o mais ágil e o mais violento. Masculinidade pode ser, e muitas vezes é, bem mais do que isso.
E Dark Souls é muito mais do que isso.
2- Dark Souls é bem mais profundo do que só morrer
Dark Souls é sobre aprender e se superar. Dark Souls é um jogo sobre tristeza, falta de esperança, e a força pra lutar que só pode existir quando tudo já deixou de fazer sentido.
Dark Souls é um poema interativo que você vai ler de forma diferente, mais profundamente, a cada nova jogada.
Dark Souls é sobre interação. Procurar saber com sues amigues onde conseguir tal item. Procurar ajuda pra derrotar tal chefe, ou ganhar inteligência sobre tal área. E sim, até desafiar jogadores para um duelo.
Jogar Dark Souls é como tentar aprender a tocar uma parte de uma sinfonia. No seu próprio ritmo você descobre sua melhor forma de contribuir para a peça. No seu próprio tempo você entra no ritmo da peça. E quando você finalmente consegue terminá-la, é a coisa mais linda que você já ouviu.
3 — Dark Souls não é tão difícil
Sendo bem sincera? Eu sou PÉSSIMA em videogames. Em todos os gêneros de videogame. Eu NUNCA fechei UM Mario, eu tenho a mira de um pato caolho, eu vivo perdendo em jogos de luta pra crianças com só um dígito de idade, e mesmo assim… Eu sou decente em Dark Souls.
Dark Souls não é tão difícil.
Me lembro da primeira vez que eu joguei Demon’s Souls, e eu nunca tinha ouvido falar nessa série de jogos antes. Eu aluguei na locadora que eu frequento só porque achei a capa legal, e eu quase matei o primeiro chefe do jogo na minha primeira tentativa (ênfase no quase). E como eu disse, eu sou PÉSSIMA em videogames.
É claro que o resto do jogo, e os outros jogos, não foram nem de longe tão mamão com açúcar e eu sofri bastante, mas esse jogo é a essência de um sentimento que eu e meu irmão tinhamos muito na época do PS1 e do PS2: “Nossa… Fica fácil depois que você descobre o que fazer né?”
Você provavelmente vai apanhar bastante de Dark Souls, mas não mais do que você provavelmente já apanhou de muitos outros jogos na sua vida. E quando você finalmente “entende” o que tá acontecendo com determinada fase ou inimigo, o jogo se torna até fácil.
E eu não estou falando de memória muscular. Eu estou falando de realmente aprender. Saber esperar por emboscadas, tempos de carregar magia, velocidade de projéteis. Tudo um monte de coisas que você aprende dentro do jogo, constantemente, sem saber que você está aprendendo. E o que parecia difícil ontem, pode parecer ridículo de fácil amanhã.
Dark Souls é um jogo de ação lenta. O terceiro optou por uma veia um pouco mais frenética como Bloodborne, mas ainda assim é um jogo que requer mais preparação e estratégia do que habilidade propriamente dita. Uma comparação que eu gosto de fazer é: “Se Firem Emblem é como xadrez, Dark Souls é como esgrima”.
Usando as palavras do meu querido Jim Sterling, Dark Souls é um dos jogos mais jogáveis que saiu nos últimos anos. Os bugs são mínimos, o jogo nunca apresenta desafios insuperáveis, e o gameplay é consistente. E o último fator é algo essencial que falta na maioria dos grandes jogos hoje em dia.
Isso que eu vou falar agora é um pouco de chatisse de game design que normalmente passa despercebida peles jogadores, mas é importante falar do mesmo jeito, pelo objetivo de estudar o jogo enquanto obra de arte pra melhorarmos o nosso ofício enquanto designers: Dark Souls nunca quebra suas próprias regras. Tudo em Dark Souls foi criado com as mecânicas do jogo em mente — o jogo é consistente e sabe o que ele mesmo quer ser. Não há mecânicas inúteis ou pouco utilizadas, e ele não quebra as próprias regras pelo bem da história. O jogo é completamente auto-suficiente. Isso o torna muito mais fácil de ser jogado do que a maioria dos seus contemporâneos.
Dark Souls não é fácil — nem de longe — mas se você joga videogames de ação com alguma frequência, Dark Souls não vai ser muito mais difícil do que esses. E Dark Souls exige uma certa familiaridade com “lógica de videogame” para que você possa subverter essa lógica. Mesmo assim, tem jogos bem piores que Dark Souls por aí que não recebem a mesma fama.
Entretanto, pessoas que nunca jogaram videogame na vida ou só jogam casualmente vão ter um pouco de dificuldade. E se você optar por combate corpo a corpo, o jogo também se torna ainda menos acessível para pessoas mais velhas, pessoas com certos impedimentos neurais ou qualquer pessoa com reflexos mais lentos do que a média da população.
Por design, Dark Souls acaba excluindo pessoas com problemas motores, e isso é ruim. Pra garantir maior acessibilidade Dark Souls PRECISA de um modo de jogo mais fácil.
Mas quando isso vai acontecer? Nunca. Dark Souls 3 foi o último jogo na série. Mas eu acredito que a fromsoftware vai continuar fazendo jogos na mesma veia que este, e esse é um problema que precisa ser abordado. E será que ele vai?
Não enquanto a fanbase exclusionista e elitista e machista dos jogos continuar acreditando que Dark Souls é só pra “gamers de verdade”. Não há NADA especial em Dark Souls que faz com que só um grupo de pessoas especialistas possam apreciá-lo. Este é um jogo como qualquer outro e qualquer pessoa deveria poder jogá-lo.
Claro que tem horas que Dark Souls consegue ser meio injusto — New Londo é o PIOR LUGAR DA FACE DA TERRA. — mas ainda acredito que qualquer pessoa consegue jogá-lo, mesmo que tenha que farmar humanidade por um tempo e estar sempre no co-op. A cultura do “git gud” em volta desse jogo não faz o menor sentido, e a equipe de marketing em volta do jogo só piora a situação.
Um modo de jogo mais fácil pra Dark Souls não ia machucar ninguém — afinal se o ego da pessoa é baseado em poder jogar Dark Souls esse ego é bem fraquinho — e traria mais fãs para a série, por tirar esse estigma que o jogo criou encima de si mesmo. Fãs que só querem conhecer a história e o mundo do jogo, e fãs que tem habilidades motoras abaixo da média.
Fãs clássicos da série ainda teriam a experiência original que não seria, de forma alguma, diminuída pelo modo de jogo mais fácil. E quanto mais gente curtindo alguma coisa que a gente gosta, melhor! Mais assuntos para dividir com mais pessoas, e uma fandom maior e mais diversa que perceberia e criaria coisas que uma fandom menor jamais conseguiria.
Então eis minha sugestão para o próximo jogo da From Software (potencialmente, Bloodborne 2): Crie um modo de jogo mais fácil. Vai ser demais!