ARQUIVO — Mas Naquela Época! História do Preconceito Sexual na Fantasia Medieval

Olívia Lobo Guerreiro
16 min readNov 25, 2018

Trigger Warning: Weird Tales. As Crônicas de Gor. Não tente satisfazer sua curiosidade mórbida.

Enrolei pra caralho. Mais de um mês, mas aqui estou de volta ao reino dos mortais para falar de Fantasia Medieval e do porque eu gosto tanto de Dragon Age e não consigo calar a boca sobre esse negócio. Mas antes de falar da desconstrução do gênero, é bom a gente falar da construção dele. Em específico sobre a relação dele com preconceitos sexuais.

Da última vez nós falamos da origem dos preconceitos sexuais no nosso mundo. E aquela foi uma discussão extremamente interessante e elucidativa, mas por que ela é importante pra falar de fantasia? Fantasia é o que quer que surja nas nossas imaginações, não é mesmo? Então por que isso deveria importar?

Eu odeio ter que começar logo numa tangente, mas eu SEI como a galera do boardgame consegue ser pedante em relação a detalhes. Então vamos tirar isso do caminho antes que a gente possa trabalhar o que deve ser trabalhado de verdade:

Por “fantasia medieval” eu defino todos os trabalhos de fantasia — seja em jogos, filmes, livros ou música — que trabalham com um cenário fictício com tecnologia limitada a de qualquer período histórico da Europa e do Mediterrâneo entre a era do ferro e o renascentismo, com o objetivo de fabular uma época perdida. Isso engloba o que muitas outras autoras chamam de “sword and sorcery”, “high fantasy”, “low fantasy” e “dark fantasy”.

Exemplos famosos de fantasia medieval de como usamos ela aqui englobam The Well at the World’s End; Conan, O Bárbaro; O Senhor dos Anéis; As Crônicas de Nárnia; Forgotten Realms; Dragon Age; The Legend of Zelda; Berserk; entre outros.

Fantasia Medieval não simplesmente surgiu do nada, e foi uma evolução natural de outros gêneros literários que haviam sido trabalhados desde o século XVII — principalmente os contos cavalheirescos. Mas foi com a junção da Ficção Especulativa e dos Contos de Fada Modernos na década de 1870 que a Fantasia Medieval começou a ganhar forma.

Mas como durante muito tempo era difícil discernir o que era um conto de fadas moderno e o que era fantasia medieval, para os propósitos deste estudo só vamos levar em consideração as histórias que foram publicadas a partir de 1894, usando “The Wood Beyond The World” de William Morris como marco inicial.

Chatice fora do caminho? Okay.

Toda cultura tem certo apreço pela sua própria mitologia. E com o surgimento da “identidade européia” no século XIX houve uma certa tendência a procurar “valores europeus” dentro das culturas pagãs mas sem desistir dos valores já enraizados do cristianismo. E em especial para o nosso estudo de hoje, era procurado o significado da “mulher européia”.

Cada escola de estudos que estava procurando por essas respostas chegou a conclusões diferentes. Mas infelizmente nenhuma dessas escolas de estudo envolvia mulheres. Eram praticamente todos homens procurando alguma forma de idealização feminina dentro das mitologias greco-romanas, nórdicas e celtas. E Morris, Tolkien e Lewis — os pais europeus da fantasia medieval — faziam parte dessa busca.

Em comparação com o resto dos trabalhos lançados na época, o que esses três escreviam era bastante progressivo. E por mais irônico que isso soe, o trabalho deles conseguia ser muito mais positivo com a mulheridade justamente por estarem procurando valores cristãos.

Lembram do Amor Cortês que eu comentei no último texto? É dele que vem os principais valores da feminilidade presentes nesses textos.

Morris, Tolkien e Lewis em geral escreviam dois tipos de mulheres: 1. A linda mulher cuidadora do lar, de benevolência tão majestosa quanto a sua aparência. E 2. A terrível bruxa de grande poder capaz de esmagar o mundo com um estalar de dedos. Tolkien e Lewis além disso também representam na sua obra a garota jovem que rejeita os papéis clássicos de gênero sem rejeitar seu gênero em si. Éowyn no caso de Tolkien e Susan no caso de Lewis.

E Tolkien ainda vai um passo além com Galadriel, sendo tão linda e benevolente quanto poderosa e terrível.

Tem um trabalho ótimo que se trata da relação de Tolkien com gênero: “I Am No Man; J.R.R. Tolkien’s Lord of The Rings as Gender-Progressive Text” ou “Não Sou Um Homem; O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien Como Texto Progressivo de Gênero”da Justine A. di Giovanni. E lendo esse e alguns outros trabalhos, como esse editorial bem curtinho na Mary Sue, somos levadas a entender que Tolkien era um homem bem à frente do seu tempo. Criando textos consideravelmente progressivos em relação ao gênero em um ambiente acadêmico que provavelmente riria da cara dele por acreditar que mulheres merecem algum papel de protagonismo na ficção.

Mas a sua visão de mundo de um veterano da Primeira Guerra Mundial ainda se faz presente no texto. Eu geralmente advogo pela Morte do Autor, mas quando se trata de literatura e da maioria das formas de arte ainda existe a identidade nebulosa do “autor”, por mais que essa identidade tenha perdido sua autoridade no mundo pós-moderno. Mais sobre isso aqui. E a entidade do autor no caso de Senhor dos Anéis, que talvez não reflita o Tolkien da vida real, parece ser a de um homem com relações complicadas com mulheres. Di Giovanni acredita que essa relação pode surgir de uma certa ausência materna, mas eu acredito que tem mais a ver com contexto histórico.

Havia, nessa época pós-guerra, a necessidade da Europa se unir em uma identidade. E os arquétipos femininos apresentados na obra de Tolkien são os arquétipos mais comuns do imaginário europeu cristão: Dona de casa linda e perfeita (Guinevere), bruxa má e poderosa (Morgan le Fay), rebelde masculinizada (Joana d’Arc). Com as duas primeiras sendo definidas primariamente pela sua relação com os homens ao seu redor.

Ele e muitos outros autores da época estavam usando símbolos pagãos para fabular uma Europa idealizada cristã. Por causa desse pano de fundo cristão a sexualidade presente nos povos que esses autores procuravam retratar simplesmente não existe. Esses não eram valores e nem arquétipos comuns para os povos nos quais Tolkien se inspirou para o resto de seus mitos.

A maior parte de O Senhor dos Anéis foi baseada nas Eddas e nas Sagas — conjuntos de textos sobre a mitologia nórdica. E sabe-se hoje em dia que os nórdicos negociavam tanto casamentos matrilineares quanto patrilineares, então as ansiedades que Éowyn sofria em Rohan provavelmente não aconteceriam numa tribo qualquer da península escandinava. E eles adoravam sexo tanto quanto qualquer outro povo pagão europeu, mas simplesmente não existe sexualidade no universo de Tolkien porque ele está sendo embasado em valores cristãos, não pagãos.

“Mas Felicia, o objetivo de Tolkien era criar um mito exclusivamente inglês!”

Bom, é isso que ele disse. Não foi isso que ele fez. Mas vou te dar o benefício da dúvida.

Acontece que hoje em dia acredita-se que a maioria das tribos que habitaram as ilhas britânicas antes da cristianização eram extremamente matrifocais. E isso é refletido pelo número de arquétipos femininos diferentes que existem dentro do mito celta. E Deusas como Cerridwen — que não se encaixam em nenhum dos arquétipos demonstrados há alguns parágrafos — compõe a mitologia celta. Mas sendo justa com o cara, a maior parte dessas informações só começou a ser desenterrada depois da publicação de O Senhor dos Anéis.

Mas isso não muda o fato de que FANTASIA MEDIEVAL NÃO É RECRIAÇÃO HISTÓRICA. Todomundo que cria esse tipo de fantasia está criando uma fábula de uma Europa idealizada que nunca aconteceu. E esses ideais vão variar de acordo com cada pessoa, região, e contexto histórico. Então enquanto a fantasia medieval na Europa estava procurando ideais castos e mulheres dentro dos arquétipos cristãos, algo muito diferente estava acontecendo nos Estados Unidos. Justamente pelos ideais de ambas as regiões na época entre guerras serem tão estrondosamente diferentes.

Nos Estados Unidos, a ficção científica e a fantasia cresceram de mãos dadas. Todas elas explorando o mistério do desconhecido OOOOOoooOOOooooOOoooo. Mas cristianismo? Identidade nacional? Bons costumes? QUEM LIGA PRA ESSA MERDA? QUERO SEXO, SATANÁS, DINHEIRO E PROPRIEDADE PRIVADA, PORRA!

Fantasia Medieval norte-americana nasceu nas revistas de Pulp Fiction (não o filme), onde contos de violência e sexo corriam soltos (mais ou menos o filme), e onde ganância é boa.

A mais popular dessas revistas foi Weird Tales que esteve em publicação desde 1923 até 1954, e é a coleção de trabalhos fictícios mais influente na história da fantasia depois de Tolkien.

Quando falamos de Fantasia Medieval nos Estados Unidos temos que falar de Robert E. Howard, criador de Conan, O Bárbaro. Ele estreou na Weird Tales em Agosto de 1929 com o seu conto The Shadow Kingdom, que também foi a estréia de um personagem que vocês devem conhecer como Kull, O Conquistador. Antecessor de Conan.

Howard e seus contemporâneos não buscavam identidade. Eles buscavam liberdade e aventura. Mas a noção americana de liberdade. A fantasia apresentada em Weird Tales era repleta de homens pegando o que eles querem, como eles querem, quando eles querem. Inclusive mulheres.

Enquanto racismo no trabalho dos europeus citados na seção anterior era tímido para os padrões da época, os autores dessas revistas não tinham qualquer escrúpulo na hora de expressar seu desgosto pelas culturas de pessoas não brancas. É só olhar qualquer capa da revista e você vai ver do que eu estou falando. Eu não recomendo de verdade que você faça isso, mas se a minha palavra não é suficiente pra te convencer o google consegue mostrar umas paradas bem nojentas.

Alguns autores, como a Catherine L. Moore, procuravam um revisionismo histórico como forma de justificar ideais capitalistas. Mas não fugia muito da realidade… Exceto pelas capas das coletâneas, mas a gente fala disso quando chegar nos anos 60. A maior parte dos autores pulp estava mais investida em mistérios.

A ficção científica explorava as ansiedades do futuro, o horror sobrenatural explorava os mistérios do espírito, e a fantasia de época explorava passados tão distantes que ninguém poderia comprovar ou desprovar. E em passados tão distantes, o “Estado Natural” de Hobbes e outros filósofos liberais poderiam ser perfeitamente explorados e justificados.

E é exatamente isso que acontece em Conan. Todos os objetivos de todas as personagens são conquista de poder e vingança. Onde tudo é um ato de violência e conflito, inclusive o sexo, onde o homem sempre domina e estupra a mulher. E quando a mulher toma uma posição ativa é sempre com o objetivo de manipulação ou assassinato.

Embora nesse tipo de ficção haja espaço para a típica homoafetividade greco-romana, não há espaço para a homossexualidade. Todo ato sexual é um ato de violência nessas histórias, então não há porque existir violência sexual entre iguais. Se um homem tentasse estuprar o outro, isso resultaria em uma simples luta de espadas como outra qualquer.

E mulheres não são capazes de subjugar sexualmente qualquer pessoa porque… Bom, provavelmente porque elas não tem pinto. E a gente já falou disso da outra vez. Quando mulheres assertiam sua dominância nesse tipo de história, era sempre por meios extremamente masculinos e… Bom, fálicos. Violência com espadas.

Mas as coisas evoluiram com o tempo né? Certamente a troca de ideias entre europeus e americanos mudou algo na fantasia medieval, né?

Bom… Sim e não.

Quase toda capa do Weird Tales tinha uma mulher com as teta pulando pra fora. E isso não mudou de verdade na Fantasia até a última década pra falar a verdade.

Acho que é “justificável” com os tipos de Conan. O herói titular anda de tanguinha. Ninguém tem muita roupa naquela bosta. Mas isso incentivou uma tendência. Tendência que pega personagens tipo Jirel of Joiry (imagem logo acima), que faz parte da corrente de revisionismo histórico e se trata de uma rainha gaulesa fictícia… E bota esse biquíni de ouro nela…

Isso era um problema particularmente grande com as revistas de quadrinhos entre os anos 60 e 80. Acho que todomundo aqui cansou de ver tetas pulando pra fora em quadrinhos da Marvel e da DC. Mas foi esse tipo de arte que popularizou o que agora é comumente chamado de “bikini mail” e a “coluna quebrada” que mostra tetas e bunda num quadro só.

Mesmo que o texto não fosse sexista (como nos trabalhos da Janet Morris ou da Catherine L. Moore) a arte era. Então, como em todo bom ciclo, o texto dos homens inspirou a estética dos homens que inspirou mais textos vindo dos homens. E o texto mais desprezível e nojento a sair dessa estética foram as Crônicas de Gor, publicadas por John Norman na década de 60.

Perdoem meu claro ódio nos próximos poucos parágrafos, mas essa pilha de bosta completamente imoral chamada de Gor é o perfeito exemplo do quanto nossos ideais, filosofias e contextos pessoais afetam muito mais nosso trabalho com a ficção e a fantasia do que “validez histórica”.

Pois veja, John Norman é um “professor” de “filosofia” que acredita num caralho chamado “naturalismo ético”, que é basicamente a pior parte de Hobbes misturada com a pior parte de Nietzsche, roubando uns argumentos nada a ver de Darwin pra formar um TUMOR filosófico que ele chama de teoria. Então eu diria que John Norman é o sinônimo de câncer e o dia que ele morrer o mundo será um lugar muito mais feliz porque as pseudo acadêmicas infelizes que nem eu que vão ser obrigadas a estudar o trabalho dele pelo menos vão terminar as sessões de tortura auto-infligida com a satisfação de saber que essa doença não caminha mais entre nós. Blessed be.

Acho que com essa comparação ele tá mais pra gripe do galo…

Enfim!

Em suma, ele acredita que se a moralidade não for baseada em algo “natural” não há moralidade de verdade. E o que ele valoriza como “natural” obviamente é a violência, graças ao mal entendimento de “sobrevivência dos mais fortes”, e a hierarquia de poderes, graças ao mal entendimento das divisões sociais de outros animais.

Essas visões são refletidas no seu trabalho de ficção fantástica onde a óbvia extrapolação de violência e hierarquia é a escravidão. Mas ao contrário dos filósofos clássicos que justificavam a escravidão de povos não-brancos com inferioridade genética, cultural ou espiritual, Norman aponta seus desejos de dominação às mulheres.

Mulheres em Gor são sempre propriedade dos homens, quer como esposas ou simplesmente como escravas. E elas vivem uma existência de subjugação, onde a única forma de impedir a sua própria escravidão é mantendo-se celibata ou tendo relações sexuais exclusivamente com seu marido ou com seus escravos. Qualquer ato que possa ser visto como sexual vindo de uma mulher no mundo de Gor justifica a sua escravização. Mas isso apenas nas cidades civilizadas. Em lugares onde o “homem natural” se manisfesta, a mulher é sempre submissa do homem. A justificativa para isso é o poderio muscular masculino que sempre subjuga as mulheres, e portanto essa é a “moralidade natural”, como diria Norman, que molda toda sociedade em Gor.

Se você acredita que qualquer uma dessas coisas é aceitável no mundo real, você não é bem-vindo no meu blog. Mas se isso for verdade você provavelmente se chama John Norman, porque ele deve ser a única pessoa de verdade que lê esses romances e acredita que qualquer uma dessas ideias é aplicável no mundo real. As Crônicas de Gor tem uma fandom consideravelmente grande, mas todos os membros dessa fandom são roleplayers e BDSMers, que só aplicam as ideias propostas por Norman como forma de fetiche sexual e nada mais.

E como uma pessoa que incorpora coisas extremamente problemáticas na minha vida sexual, eu não posso julgar. Cada um com suas pira. Mas esses livros não são vendidos como válvulas de escape para desejos sexuais de submissão e dominação. São vendidos como obras literárias filosóficas de fantasia medieval a fim de ponderar a “moralidade natural” das estruturas de poder e dos movimentos sociais. E é a cria mais óbvia que Conan e a Weird Tales poderiam ter com o passar dos anos.

Mas não foi a única cria. Nos anos 70, Conan e Sauron se casaram e criaram a fantasia medieval definitiva: Dungeons & Dragons.

Existe MUITA coisa interessante pra se analisar em D&D. Principalmente pelo fato de que ele foi o primeiro RPG de mesa a ser publicado e continua vivo, firme e forte até hoje.

Mas a gente tá aqui pra falar de séquiso. Como Dungeons & Dragons lidou com sexo? Bom… Ele não lidou. Ele não buscava ideais cristãos ou liberais pois não passava de um brinquedo. Uma ferramenta imaginativa onde qualquer pessoa pudesse projetar o que ela quisesse. Não havia nada no texto que lhe impedisse de jogar como uma mulher. Sexo e gênero era simplesmente um não-problema. Como resultado, muitas mulheres começaram a jogar D&D e muitas paladinas de fullplate começaram a surgir.

Claro que não era a regra. Em maioria a regra ainda era o bikini mail, mas NADA sobre sexo jamais foi dito no texto. E mesmo assim surgiram estereótipos. Feiticeiras são sempre mulheres com “carisma 20, 10 em cada peito”. Guerreiros sempre homens cavalheirescos. E todomundo sempre branco.

Mas o texto nunca falou nada sobre raça, ou gênero, ou sexo. Todas essas coisas foram presumidas por um público que já tinha visões pré-concebidas de como a fantasia medieval deve se comportar. Mas essa é a liberdade diferencial de RPGs de mesa, não? Você pode projetar o que quiser nas suas campanhas, então enquanto os clubes do bolinha jogavam aventuras com machões 4x4 e mulheres peitudas, alunas de teatro e pessoas LGBT estavam jogando dramas entre elfos sombrios e magos tímidos reclusos no Portão de Baldur.

Cenas tão abertas quanto D&D criam espaço para a diversidade se proliferar. Mas um mito foi criado de que esse é um jogo muito difícil e que só um certo tipo de pessoas poderia tomar parte. Então uma cena que deveria ser extremamente aberta para todo tipo de pessoa se fechou novamente para um nicho dominado por homens cis branco e héteros com visões de mundo moldadas pelo seu privilégio.

Mas mesmo com o nicho do Dungeons & Dragons e, consequentemente, da fantasia medieval, se tornando um percebido clube dos homens, ele evoluiu, como qualquer gênero literário.

Um dos jogadores de D&D mais ávidos criou a série de romances de fantasia medieval mais popular da atualidade: As Crônicas de Gelo e Fogo. Este jogador é, obviamente, George R.R. Martin.

Vindo da mesma escola de fantasia medieval que Catherine L. Moore, Martin parece estar mais interessado em revisionismo histórico do que busca por identidade ou por validação ideológica. Ele tenta criar uma fantasia medieval com personagens humanas realistas. E isso significa tudo que compõe cada pessoa, desde gênero até diferentes expressões de sexualidade, visões de mundo e privilégios.

Westeros é um mundo onde existe um privilégio masculino muito semelhante ao da Europa medieval/renascentista. E isso é usado para criar conflitos interessantes principalmente para as suas personagens femininas, que lidam com problemáticas de gênero de formas muito diversas.

Mas a história da fantasia medieval é escura e fria. E quando as pessoas olham para a obra de Martin elas não veem uma reconstrução criativa de questões de gênero importantes para o imaginário ocidental… Elas veem estupro atrás de estupro atrás de estupro.

E sendo honesta, é exatamente isso que o seriado Game of Thrones da HBO faz. Onde Martin tenta recriar uma “Europa idealizada” na qual os seus problemas econômicos e sociais não se resolvem por um simples desvio do olhar, o grande mercado e o público só veem mais oportunidades de deixar mulheres desconfortáveis e homens hétero excitados.

E não é só a HBO que tem culpa. É o próprio público moderno que parece ter perdido a capacidade de interpretação de texto e pensamento crítico. Um colega meu acreditava que a HBO tinha inventado a sexualidade do Renly Baratheon no seriado, mas Martin é um autor que se preocupa com diversidade, e depois de ler o livro eu tenho certeza que o escudo não era a única coisa que aquele personagem tinha de veado.

E ele se preocupa com diversidade porque personagens diversos sempre criam tramas mais interessantes. E o objetivo de qualquer autor de ficção é criar tramas interessantes.

“mais felicia na era medieval as pessoas morria de diarréia. puque o jorge n escreve sobre diarréia?”

Você esqueceu a parte do idealizada? A fantasia medieval raramente tem interesse em lidar com doenças como essas porque não é esse tipo de história que esse gênero tenta contar. Todos esses problemas nesse tipo de cenário são consertados com alquimia e magia. Problemas sociais não.

Com isso em mente, acredito que o advento do D&D criou dois tipos de fantasia medieval: A aventureira e a crítica.

É aqui que os videogames entram em foco.

Na fantasia medieval aventureira tudo se resolve com magia e ninguém presta atenção nas problemáticas sociais inerentes do gênero porque EU SÓ QUERO SOCAR UNS ORC.

A fantasia medieval aventureira não fala de sexo. Quando sexo aparece é por motivos de: Atalhos para criar drama, reprodução e alívio cômico. Bikini mails são comuns nesse tipo de história, mas é por se tratar normalmente de diversão burra onde você não tem que pensar muito. E quando a gente não pensa muito a gente sempre acaba tendendo a ir para os atalhos que a sociedade nos ensinou como normal, mesmo que depois de mais de 5 minutos pensando sobre a gente talvez não concorde.

Eu acho esse tipo de história ok. E se as armaduras dos homens forem tão ridículas quanto as das mulheres é melhor ainda porque coisas ridículas que não fazem sentido nenhum são engraçadas e divertidas se feitas de formas criativas.

Tipo, olha essa espada. É a espada mais burra que eu já vi na vida. E eu quero que minha próxima personagem use ela.

Exemplos desse tipo de história são World of Warcraft, Baldur’s Gate e… Bom… Argumentavelmente o próprio D&D.

A fantasia medieval crítica, por outro lado, pensa nos problemas sócio-econômicos inerentes que existiriam nesse tipo de cenário. O exemplo mais famoso disso obviamente são as Crônicas de Gelo e Fogo, mas o meu título favorito para falar desse assunto é Dragon Age. Porque eu amo Dragon Age e eu vou defender ele até o dia da minha morte.

Dragon Age parece um D&D genérico por fora, mas isso serve como fachada para esconder um estudo interessantíssimo sobre a origem do preconceito e da opressão social, sobre os benefícios da diversidade, e até sobre a guerra ao terrorismo.

Mas ele pega tudo que nós presumimos como naturais ao gênero (e à história da Europa) e vira tudo de ponta-cabeça. Ele pergunta coisas como “e se mulheres tivessem dominância religiosa e moral sobre os homens?” E “e se os elfos imortais de Tolkien tivessem sido escravizados e marginalizados em vez de pessoas não brancas?” Essas duas perguntas extremamente simples são o suficiente para criar o cenário de fantasia medieval mais subversivo já publicado.

Dragon Age é a fantasia medieval que leva as lições ensinadas no último post sobre a história do preconceito sexual no seu âmago. Afinal, se toda a opressão sexual que existe no mundo ocidental só existe por causa de uma revolução religiosa extremamente específica, que por sua vez moldou todas as outras facetas da sociedade, porque as mesmas opressões existiriam num mundo de fantasia onde tal revolução religiosa nunca aconteceu? Outras formas de opressão viriam à tona, como mostra o próprio Dragon Age, mas não existem motivos para acreditar que uma fantasia medieval PRECISA emular todos os problemas que existiam na Europa medieval de verdade.

O objetivo da fantasia medieval, no geral, é criar histórias interessantes que nos divirtam e nos façam pensar. E Dungeons & Dragons e Dragon Age são provas de que a fantasia medieval é a forma de trazer diversidade ao imaginário europeu.

Não há motivos para excluir mulheres desse imaginário, ou pessoas LGBT, ou pessoas não brancas. É uma das poucas formas positivas da expressão cultural do ocidente, e todas essas pessoas fazem parte da cultura ocidental e tem tanto direito quanto você, homem branco cis hétero, de participar desse coletivo imaginativo oriundos das terras caucasianas.

E vamos ser honestas… Gente branca já causou destruição o suficiente ao redor do mundo. É bom que a gente tenha trazido pro resto da galera pelo menos uma coisa boa, nem que essa coisa sejam só livros e videogames. Não vamos tentar excluir essa galera por causa de qualquer versão idealizada que você tenha na sua cabeça de “Europa”. A Europa mudou, várias vezes e por vários motivos, e agora é bom que os seus habitantes e descendentes continuem mudando junto.

Terminei finalmente. Perdão a demora.

O próximo texto da coluna vai se tratar de um exemplo claro de como lidar com opressões sistemáticas em um cenário fantástico: Dragon Age.

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