
ARQUIVO — Trans In Games’ Spin Off — Pokémon GO, Passabilidade e Gêneros Subjetivos
Isso é um Spin Off da coluna Trans In Games que eu criei com o objetivo de falar sobre Pokémon GO. Já tem um tempo que eu queria fazer um Trans In Games sobre Pokémon, mas a verdade é que a série não tem muita coisa pra ser trabalhada na questão de gênero. Não existe ambiguidade nos gêneros dos treinadores e treinadoras Pokémon exceto talvez de uma Beauty que aparece no Pokémon X/Y.
E aí veio Pokémon GO. E quando você chega no nível 5 nesse jogo, você deve escolher de qual time você fará parte: Você tem coragem e força do time Valor, sabedoria e inteligência do time mystic, ou intuição e instinto selvagem do time Instinct?
Não é de se impressionar que quando revelaram quem seriam os líderes dos vindouros times de Pokémon GO, a comunidade trans escolheu TODOS ELES.
Muita gente pirou nesses líderes porque… Eles parecem com a gente.
Spark, um menino de feições “afeminadas” e postura relaxada foi pego pela comunidade como, não apenas um guri trans, mas também o Senhor dos Memes. Esse moleque ficou tão epicamente zuado nas redes sociais que ele passou a ser conhecido como um garoto que quer mais se divertir e não liga muito pra brigas (nem pra relacionamentos). Muitas pessoas vêem o spark tanto como um guri trans como um ace.
A Blanche, minha waifu eterna, saiu com roupas azuis, brancas e roxas — cores muito próximas da bandeira trans. Isso em combinação com suas feições ambíguas fez a galera pegar Blanche como uma pessoa não-binária.
E a Candela já se imprimiu na cabeça das pessoas como uma sapatrans pronta pra pegar.
Eu pessoalmente gosto de ver a Blanche como uma mulher transfeminina que nem eu, e a Candela como uma sapatrans atleta e as duas estão num namoro lésbico. E eu gosto de ver um spark como um carinha amigo das duas que fica fora disso (não é importante se ele é trans ou não por que eu quero saber é das duas).
Mas nem tudo são flores, né?
A um tempo atrás eu postei algo na página do Facebook sobre esse jogo que eu vou parafrasear aqui:
Ontem eu estava ouvindo um podcast (cooptional podcast, do total biscuit) onde foi comentado sobre como eles odeiam as pessoas atribuindo identidades de gênero não-binárias aos líderes dos três times de Pokémon Go, e eu senti necessidade de me posicionar sobre o assunto e esclarecer umas coisas pra galera cis.
É péssimo quando as pessoas brigam por causa de uma personagem fictícia — ainda mais quando o motivo da briga é a identidade de gênero da personagem — isso diminui o valor artístico dessa personagem e usa pessoas trans de verdade como token pra uma discussão sem sentido.
Agora, se eu quiser dizer que a Candela é uma mulher trans lésbica ou whatever, isso não é da sua conta.
A maior parte do meu trabalho aqui gira em torno da morte do autor — uma teoria filosófica que muita gente não concorda, o que é de boa, mas não vamos brigar por conta disso — que fala sobre como, depois que uma obra é publicada, o autor perde toda a autoridade sobre a sua obra e ela passa a pertencer ao público, que através da apreciação e de diferentes interpretações, dão a essa obra o status de arte.
Videogames não são exceção. E a visão de cada pessoa sobre essas personagens vale mais do que a visão da Nintendo. São interpretações individuais que tornam arte, arte.
A beleza em particular das fandoms é o quanto essas interpretações individuais tomam vida na forma de fanart, fanfic, e discussão saudável.
Vendo que a internet nos permite dividir nossas próprias opiniões sobre obras de arte, no meu blog eu proponho interpretações políticas que desafiam papéis de gênero, expõe transfobia, e desfia a importância do “canon” (e sendo completamente sincera, do direito autoral também).
E eu também defendo que a discussão sobre a natureza dessas obras pode ser pacífica. Muita gente veio brigar comigo pra defender o fato de que o Naoto de Persona 4 é uma menina cis, que a Gwyndolin de Dark Souls é um homem cis e que a Linkle de Hyrule Warriors Legends é uma menina cis. E eu sinceramente acredito que as pessoas que vieram brigar comigo por causa disso não sabem o que arte significa, e eu simplesmente sinto pena delas. Será que dói pensar que suas personagens favoritas podem não ter a mesma identidade de gênero que você gostaria que elas tivessem?
O quê eu proponho aqui é uma desconstrução da cisgeneridade compulsória e é o que eu espero que minhes outres irmãs e irmãos trans fãs de Pokémon Go também estejam fazendo.
Mas agora eu tenho que admitir, tem algo além do desafio à cisgeneridade compulsória acontecendo aqui.
Vocês notaram como as minhas visões pessoais (meus head-cannons) divergem do consenso geral da comunidade trans sobre essas personagens? Eu chego até a ser um pouco misândrica em relação ao Spark por não conseguir ver ele como nada além do Senhor dos Memes.
E acho que isso tem a ver com as nossas noções de gênero e passabilidade.
Gênero é uma construção social — difícil negar isso — e como toda construção social, ela depende de um consenso. Mas quando a maioria das teorias sobre gênero que nós temos hoje surgiu, não existia o Tumblr nem todos esses gêneros que hoje estão além do masculino e do feminino e não se limitam apenas à variação “queer” ou outras variações regionais. E o gênero, hoje em dia, é visto como um papel que nós damos a nós mesmos.
Mas vamos ser realistas por um segundo. Se você tem barba, está usando calças e camiseta larga e está cruzando a rua comigo quando eu preciso desesperadamente perguntar as horas eu vou dizer “moço, você pode me dizer as horas?”, mesmo que você seja, por dentro, uma moça.
Gênero é identidade, mas gênero também é performance, e eu vou soar muito babaca por dizer isso, mas sendo completamente sincera, nós não podemos esperar respeito à nossa identidade a não ser que performemos essa identidade. E a performance de barba, camisa larga e calças me diz, imediatamente, homem. Essa não é nem de longe a única maneira de expressar masculinidade , mas esses significadores vão dizer para mim e para todo o mundo ao redor dessa pessoa: homem. Junto com todos os privilégios que isso acarreta.
Quando a gente entra no espectro não-binário de expressões de gênero as coisas ficam mais complicadas pois não há consenso. O que é masculino pra uma pessoa é feminino pra outra. O meu cabelo curto novo me rendeu elogios sobre a minha feminilidade no curso que eu faço. O mesmo cabelo me rendeu um atendente de lanchonete me chama de “rapaz” e um grupo de jovens preocupados no ônibus a me perguntar se “você tá bem, bróder?”, mesmo que em todas essas situações eu estivesse de saia.
Quando eu vi Blanche, eu imediatamente li nessa personagem uma mulher. E a maior parte das pessoas também parece ter tido a mesma impressão com a líder do time Mystic. Mas o meu irmão (cis) leu essa personagem imediatamente como homem; e uma amiga minha fica legitimamente confusa com o gênero dessa personagem e não sabe o que dizer quando se trata dela. E enquanto isso várias outras pessoas vêem Blanche como sendo de vários outros gêneros não-binários diferentes.
A Candela é uma mulher de curvas expressivas, e muitas pessoas pensam que ela não tem como ela ser trans com todas essas curvas. Enquanto que outras pessoas argumentam que ela é trans JUSTAMENTE por causa dessas curvas.
E o Spark… É o Senhor dos Memes.
(dá pra ver que eu sou Mystic só pelo tamanho dos parágrafos né?)
O que era claramente feminino pra mim, era claramente masculino pro meu irmão. O que era claramente transfeminino para alguns, era claramente cisfeminino para outros.
A verdade é que existem pessoas de todos os tipos de corpos e aparências em todos os gêneros. E a forma como nós lemos os outros nem sempre vai bater com a forma como a própria pessoa se vê ou como a pessoa do seu lado vê ela. Como eu disse nesse outro post, passabilidade é um conceito que logicamente não tem como existir, pois cada pessoa construiu ideias de gênero na sua cabeça de forma diferente da outra. E eu jamais poderia criminalizar o atendente da lanchonete por me chamar de moço, afinal, ensinaram ele desde criança que qualquer pessoa com cabelo curto é homem; enquanto que eu aprendi que pessoas como a Blanche são sempre mulheres; e outras pessoas nem tanto.
E até que a pessoa que é assunto desses julgamentos se manifeste, nenhum de nós está errado.
E como eu duvido que algum dia a Niantic se manifeste sobre os gêneros e sexos canônicos de cada personagem, a blanche e a candela vão continuar sendo sapatrans lindas, e o spark vai continuar sendo um menino bobo e divertido provavelmente assexual.