Liberdade no capitalismo tardio?

Olívia Lobo Guerreiro
8 min readFeb 26, 2019

Eu estava escrevendo uma série de textos chamada “diar.ptx” um tempo atrás, e… Eles são textos péssimos. Extremamente reacionários e assustados com o mundo sem nenhum tipo de conclusão útil. É só eu tendo medo de viver.

Eu quero corrigir isso.

Eles vão continuar ali pelo bem do arquivamento e por me lembrar do quanto eu fiquei girando em círculos sobre minhas próprias convicções por simplesmente estar com medo. Mas vamos tentar fazer algo mais útil com isso.

Uma pessoa importante na minha vida me disse outro dia que eu to patinando. Não acertou exatamente o motivo das minhas patinações, mas me fez pensar… O que eu to fazendo de errado na minha vida? Porque parece que eu só to correndo atrás do meu próprio rabo a tanto tempo?

Eu achei que essa corrida tava acontecendo desde dezembro, mas na verdade começou em novembro, extremamente bem ilustrado pelo meu texto “não existe liberdade no capitalismo tardio — diar.pt1“. Irônico né? Em todo meu medo do que o capitalismo estaria fazendo pra me manipular eu fui manipulada, igual um patinho.

Se por algum motivo depois dessas eleições ou depois de qualquer evento traumático associado ao sistema que a gente vive fez com que você ficasse com medo de existir ou apavorada com qualquer coisa como eu fiquei, eu quero aproveitar essa oportunidade pra te pegar pelos ombros e dizer “Sai dessa. Tá tudo bem”.

Minha namorada com frequência me ouve dizer que o capitalismo me adoeceu. E é verdade. Individualismo, competitividade, alienação. Não tem como alguém ficar saudável nesse meio. Mas você também não pode simplesmente ficar doente né?

Princípios do marketing nos ensinam, ou pelo menos até onde eu os conheço, que o lucro não existe em suprir necessidades do mercado. Ele existe em criar novas necessidades e então suprí-las o mínimo possível para que ela continue sendo uma necessidade no futuro.

Com base nesse princípio a esquerda argumenta que necessidades básicas como saúde, por exemplo, não podem ser supridas pelo setor privado. Não há interesse no capital em realmente curar as doenças que ele causa. Ele as causou porque essas doenças geram lucro, remédios são vendidos para que hajam tratamentos contínuos por tempo indeterminado mas nunca chegar à raiz do problema e realmente fazer alguma coisa para resolvê-lo. O capitalismo lida com a realidade criando problemas que ele mesmo se propõe a resolver, mas nunca oferece soluções permanentes, afim de manter o lucro constante em cima do problema. A direita gosta de propor que o capitalismo gera inovação, mas pelo ponto de vista apresentado aqui parece fazer mais sentido acreditar que o capitalismo funciona mais como uma fábrica constante de péssimas ideias e problemas intermináveis.

Extrapolamos mais um pouquinho essa lógica e notamos que o capitalismo não trabalha com o oferecimento de soluções, e sim com o oferecimento de problemas. Criar problemas, sofrimento, dor e confusão é o modus operandi do capitalismo funcionando como ele deveria. E quando você (ou eu) começa a se preocupar de maneira obsessiva com o quanto o mundo quer te foder, o capitalismo vai chegar e te oferecer as soluções temporárias que ele tanto preza.

Essas soluções temporárias envolvem, mas não estão limitadas a:

Você pode fazer todas essas coisas e nenhuma delas vai realmente solucionar o problema de que o capitalismo destruiu a sua vida. E algumas dessas “soluções”, na verdade, podem fazer mais mal ainda.

Pode parecer condescendente e insensível da minha parte — eu detesto quando as pessoas falam esse tipo de coisa pra mim quando eu to mal -, mas num sistema que funciona com a sua infelicidade, ser feliz é o ato mais revolucionário que você pode fazer.

Eu sou comunista — anarco-comunista pra ser mais exata. E por mais que tenham tentado te ensinar o oposto disso na escola, comunismo tem a ver com comunidade. E comunidade vem de confiança e amor. Nenhuma comunidade pode sobreviver sem essas coisas e é o que eu prego.

Infelizmente o individualismo do capitalismo tardio nos separou de todo sentido de comunidade que um dia a gente possa ter tido. E aquelas de nós que acabaram sofrendo com depressões, distimias e ansiedades receberam o pior que esse individualismo poderia nos oferecer, a ponto que individualizamos partes do nosso próprio ser. O indivíduo é tão valorizado na nossa cultura que não existe nem mais união entre você e você mesma. Basta olhar pra como a gente vive separando mente e corpo como se fossem coisas distintas pra ter um exemplo disso.

Se não há união dentro de nós mesmas, como há de existir união entre umas as outras? O trabalho revolucionário diante do capitalismo tardio precisa reconhecer que não existe mais só a alienação descrita por Marx do trabalhador e seu trabalho, ou do trabalhador e outros trabalhadores. A alienação chegou em tal ponto que não reconhecemos nem a nós mesmas.

“meu corpo é feio, mas sua personalidade é linda”, “é coisa da sua cabeça”, “você é diferente na internet”. Todas essas afirmações são ferramentas de nos alienar de nós mesmas e, por consequência, nos alienarmos das pessoas ao nosso redor.

Essa individualização do ser vai se manifestar de forma diferente em cada pessoa e em cada época das nossas vidas. Eu me convenci nos últimos meses de que “eu” não existo porque “eu” aparentemente sou um produto a ser vendido e trocado pelo Google e pelo Facebook. Se você se convence, como eu estava me convencendo, de que você ou parte de você não existe ou não deveria existir, isso é a alienação capitalista e o ideal do individualismo fazendo seu trabalho.

Ironicamente individualismo machuca o indivíduo. E se eu procuro me tornar “independente” do capitalismo a todo custo, eu estou cada vez mais me tornando escrava dele, pois cada vez mais me isolo, cada vez mais me separo de mim mesma, e a cada segundo se torna mais difícil se criar comunidade, mesmo dentro do meu próprio ser.

A união de você com você mesma é algo que Jung chama de “individuação”, um processo que é extremamente diferente do individualismo. Durante a individuação você não se fragmenta de si mesmo, e idealmente não se fragmentaria do mundo ao seu redor também. Uma pessoa individuada, não individualizada, reconhece sua própria totalidade. Conhece suas qualidades e defeitos, gostos e desgostos, necessidades e caprichos, e consegue suprir suas necessidades, objetivas e subjetivas, e se conhecer a ponto de que não existe necessidade de se compartimentalizar. O ser individuado se aceita e se ama como é plenamente, e não luta contra outras partes de si mesmo para conseguir controle e dominância.

Infelizmente o capitalismo faz parte do nosso contexto. E o nosso contexto faz parte de nós. Individuação não vai acontecer fugindo do nosso contexto, tendo medo dele, deixando ele nos dominar. Individuação vai acontecer conosco olhando pra parte de nós que nos incomoda, e lidando com ela. Não fugindo, e nem a destruindo porque destruí-la é impossível sem se destruir no processo, mas lidando. Frente a frente. Conhecendo todas as partes de si mesma e trabalhando o que é melhor para sua felicidade.

Eu SOU a Felicia. Eu sou wiccana. Eu gosto de Dark Souls, Bloodborne e Dragon Age. Adoro cultura japonesa e musiquinha de Idol. Sou extremamente apaixonada por cultura de internet. Gosto de metal. Gosto de fantasia medieval. Sou branca. Sou trans. Gosto de me apresentar como mulher. Tive uma criação de menino. Já fui proto-fascista e hoje sou anarco-comunista. E eu quero ter uma vagina algum dia.

E tá tudo bem.

Nenhuma dessas coisas define quem eu sou, porque eu sou todas essas coisas, e infinitamente coisas mais. Estou sempre mudando de ideias, revisando meus gostos e minhas convicções, porque eu sou um ser humano em constante fluidez procurando ficar bem com minha própria existência, pra um dia viver em comunidade, de verdade, onde todas nos encontramos em nós mesmas e não vemos dificuldade em nos encontrar nas outras.

Claro que o processo de individuação vai ser diferente pra cada pessoa. Cada uma de nós tem que encontrar o seu próprio caminho e realizar sua própria jornada. Mas o objetivo é sempre, acredito eu, te deixar ser quem você é o máximo possível, sem medo ou repressão, e ser feliz em sua totalidade consigo mesma, com suas camaradas, com nosso planeta e nosso universo. Esse é o ato mais revolucionário que podemos fazer por nós mesmas. E se eu puder ajudar os outros a atingir a mesma totalidade, melhor ainda.

Tá tudo bem. E o que não tiver bem a gente resolve, porque você é poderosa e valiosa. E eu também sou. Todas somos. Independente de defeitos, contextos, ou sofrimentos que passamos. Todas nós somos capazes de sermos nós mesmas com nossas camaradas, de cuidar de nós mesmas e assim cuidar umas das outras por consequência.

Qualquer erro pode ser corrigido, qualquer machucado pode ser curado, e nenhuma paixão ou parte da sua história precisa ser destruída porque você foi levada a crer que é merecedora de vergonha ou punição.

Esteja aí por si mesma. Dance. Celebre a sua existência da melhor forma que você conseguir. A última coisa que o capitalismo quer é que você seja feliz, afinal eles querem continuar te vendendo felicidade. Não dê isso pra eles. Encontre sua felicidade em si mesma. Você é capaz. Você é merecedora. Todas somos.

E se você tem alguma condição de me ajudar na parte financeira do meu próprio processo de individuação, enquanto a gente não abole a ideia de dinheiro e simplesmente deixa as pessoas existirem a vontade, eu gostaria de pedir que deixasse uma doação mensal no Catarse ou individual no Paypal. Ajudaria muito e eu seria eternamente grata.

Amo vocês e força pra nós.

Originally published at feliciagd.com on February 26, 2019.

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