Mas Naquela Época! Raças e o Trono de Ouro
Há MUITO tempo atrás eu escrevi duas matérias sobre como preconceito sexual surgiu na história do nosso mundo e como ele acabou sendo refletido de maneiras positivas e negativas dentro da Fantasia Medieval. E eu ia continuar o assunto explicando como Dragon Age lida com esse legado do nosso mundo para criar uma experiência muito diferente e refrescante.
Mas eu e Dragon Age terminamos o nosso relacionamento. Eu olhei pra todos os abusos incentivados pelo estúdio responsável pelo meu cenário de RPG favorito; olhei para o fato de que ele logo provavelmente será abandonado pela EA Games; olhei para todos os suplementos que ainda teriam que ser lançados para tornar Dragon Age um jogo verdadeiramente bom; e olhei pra Green Ronin simplesmente desistindo de esperar e lançando Fantasy Age no lugar. Olhei pra isso tudo e me senti obrigada a olhar nos olhos de Dragon Age e dizer “sinto muito, mas não tenho como continuar desse jeito”.
Nos abraçamos com um último beijo no seu rosto e partimos para onde os ventos pudessem nos levar.
Eu não sei onde Dragon Age está agora, mas eu me senti desolada depois do nosso término. Procurei e procurei por substitutos apropriados. Terry Pratchett? Shadowlord? Nada satisfazia o vazio ideológico deixado por Dragon Age. Então eu decidi tentar o impossível: Criar meu próprio cenário!
Depois de muitas noites mal dormidas olhando pra uma tela vazia do Word, eu finalmente consegui fazer… Algumas raças pra jogar com o sistema Modern AGE. E aí eu desisti de vez porque The Witcher apareceu como um bom substituto e eu não precisava mais fritar minha cabeça criando meu próprio cenário.
Mas aí eu pensei. Criar um cenário pode ser útil como exercício para analisar algumas problemáticas comuns dos mundos de Fantasia Medieval. Então, nesse texto, além de trazer pra vocês a problemática das Raças na Fantasia Medieval, introduzirei pra vocês O Trono de Ouro, uma fantasia da era das navegações sobre luta de classes e conflitos culturais.
E como eu comecei a escrever o cenário pelas suas dinâmicas raciais, acredito que esse seja o melhor ponto para começarmos nossa jornada.
Raça é uma construção social criada por divisões de “nacionalidade” e “pertencimento” que foram ficando cada vez mais abstratas e arbitrárias com o passar do tempo. Povos que antes jamais se considerariam parte do mesmo grupo — como saxões, irlandeses e romanos — acabaram se unindo num sentimento geral de “branquitude” que jamais existiu antes do colonialismo.
Raça só começou a surgir quando os povos europeus resolveram explorar o resto do mundo e tomar as terras já ocupadas por outros povos para eles. Branquitude, portanto, foi uma maneira dos europeus poderem respeitar as próprias fronteiras que eles criavam nos novos mundos sem ter que prestar atenção pros povos nativos dessas terras. “Eles são primitivos, nós civilizados”.
Antes da colonização européia do resto do mundo começar, entretanto, as pessoas se dividiam pela sua religião e qual interpretação da bíblia elas tomavam como verdade, não pela cor da sua pele, como mostram esses quadros de pessoas negras na era medieval. E ainda antes disso, as pessoas se identificavam como partes de tribos. Mesmo que essas tribos tivessem grandes cidades e até impérios, para efeitos de identificação pessoal, as pessoas da antiguidade se viam como parte de várias tribos, algumas dominantes, outras dominadas.
Em alguns momentos durante a história, entretanto, a divisão tribal, e as vezes até a religiosa, se perdiam em cidades cosmopolitas onde o poder da troca falava mais alto do que o preconceito com o diferente. Alexandria, Constantinopla, Istanbul e até Jerusalém foram exemplos de lugares onde o diferente era bem-vindo.
Então quando estivermos pensando em raça para os nossos mundos de fantasia, a primeira coisa que nós temos que nos perguntar é: Existiu colonialismo? Se sim, quem colonizou quem? Se não, como as pessoas se dividem? Essa divisão gera algum tipo de preconceito ou opressão sistemática?
Nós autoras brancas temos que tomar muito cuidado com a forma como a gente representa raça nas nossas obras. O que a gente escreve sempre acaba sendo reflexo dos nossos ideais, e isso pode acabar contribuindo pra forma como outras pessoas vão ver pessoas de outros grupos raciais — para o bem ou para o mau.
O gênero da fantasia foi criado num ambiente extremamente racista, completamente dominado pelos Estados Unidos e Inglaterra até mais ou menos os anos 60, motivado por aquele ideal de “procurar uma nova identidade europeia” que eu descrevi no último texto da coluna.
Felizmente Dungeons & Dragons mudou isso, trazendo uma fantasia acessível para pessoas de todos os gêneros, etnias, raças, idades, sexualidades e grupos diferentes. E todos os tipos de autoras começaram a surgir ao redor do mundo trazendo seus próprios valores e experiências para o gênero.
Claro que nem todo mundo quer falar de racismo nas suas obras, ou pelo menos não quer ficar reproduzindo racismo do mundo real em cima de mundos fantásticos onde, idealmente, as nossas leitoras gostariam de escapar. Por conta disso muita gente acaba trabalhando em cima de “racismos fantasiosos”. Ou seja, tirar todo o peso do discurso racial das costas das personagens não brancas pra ser carregado por algum tipo de criatura fantástica.
Eu não tenho total certeza sobre isso, já que não consegui encontrar nenhum estudo sobre racismos fantasiosos, mas acredito que o primeiro autor a tratar desses problemas, colocando o preconceito contra povos nativos em cima de elfos, foi Adrzej Apkowski, autor d’A Saga do Bruxo Geralt de Rivia, coloquialmente conhecida como The Witcher.
Outras autoras seguiram o exemplo, como a equipe de Dragon Age usando elfos pra falar sobre condições de vida das pessoas negras durante períodos de segregação.
Eu não tenho como dizer pra vocês como racismos fantasiosos soam para pessoas que sofrem racismo na vida real e como eles afetam essas pessoas porque 1. Eu sou branca e 2. Não encontrei nenhum estudo sobre isso. Entretanto, posso dizer as minhas impressões como alguém de fora, e convido autoras não-brancas a me contestar.
Os racismos fantasiosos, ao meu ver, acabam tirando o estigma das costas de personagens não-brancas (especialmente negras) como vítimas, ajudando a normalizar essas personagens que podem ser colocadas em posições de poder, ao mesmo tempo que traz liberdade para a autora tratar de preconceitos étnicos na sua obra.
Orcs, entretanto, são uma questão bastante particular e interessante de ser analisada.
Orcs não existem na mitologia. Nenhuma povo antigo falava de uma raça de guerreiros ultraviolentos com pele verde, presas no lugar dos dentes, e possivelmente focinhos de porco.
Ma será que existe um povo moderno que fala disso? Troque a cor da pele de verde pra preta e essa imagem se torna exatamente o que os antigos colonizadores dos séculos XVII ao XIX achavam dos guerreiros nativos da África subsaariana. Esses colonizadores viam os guerreiros dos povos africanos como uma coisa só: Brutamontes selvagens que não conhecem nada além de violência.
Foi com essa imagem mental que Tolkien criou o Orc.
A fim de criar uma imagem ideal de uma Europa Fantástica, um Outro precisava ser derrotado. Um Outro que era o tempo todo associado com cores escuras — negro, sombrio, escuridão — e com o calor — vulcões, forjas, desertos. Um Outro tão monstruoso e alienígena que ninguém teria como ver nele algo além do mau encarnado. Só que esse monstruoso e alienígena era simplesmente preto pra mente branca do século XIX.
Mesmo assim, ninguém fez muita coisa pra mudar essa visão. Mesmo décadas depois da publicação de O Senhor dos Anéis.
Em Dungeons & Dragons, até os dias de hoje, orcs são inerentemente malignos e até certo ponto irracionais. Você normalmente não pode jogar como um orc. Você só pode jogar como um meio-orc cuja mãe foi vítima de um estupro.
Então por mais que D&D tente se posicionar em favor de inclusão racial nos seus jogos hoje em dia, o orc continua usando atribuições de uma negritude imaginada por homens brancos do século XIX que viam homens negros como monstros.
Na realidade, o orc foi ficando cada vez mais preto com o passar dos anos. Basta olhar para o filme de Warcraft para notar que TODOS os orcs alí são codificados como negros. Dos traços humanos do rosto até a forma como arrumam os cabelos. E tudo bem que em Warcraft os orcs são bonzinhos, mas isso contribui para que o resto dos orcs inerentemente malvados de outras mídias sejam vistos do mesmo jeito.
Se você procurar “orc” no google agora você verá inúmeras dessas criaturas sendo estereotipadas com símbolos “primitivos” tão genéricos que parece que eles evoluíram de simplesmente representar o medo branco do guerreiro africano pra representar qualquer comunidade que seja considerada “não civilizada” pra mentalidade ocidental. Como se a não civilização levasse inerentemente à violência.
“Mas Felicia, orcs são elfos corrompidos! Igual os Dokkalfr da mitologia nórdica! Não é racismo, é mitológico!”
É, tá, desculpa cortar o seu barato, mas os elfos corrompidos do Tolkien são os Uruk-Hai, que é bem diferente de orc. E mesmo assim eles são corrompidos pela mesma escuridão que criou os orcs. Uruk-hais liderando hordas de orcs é a mesma coisa que brancos “corrompidos pela selvageria” liderando tropas de pessoas pretas. Você entende quanta coisa errada tem nessa ideia?
Se há uma criatura mitológica na qual orcs podem realmente ter sido baseados são ogros. Mas como ogros existem no mundo de Tolkien e são completamente diferentes dos orcs eu não posso confirmar a inspiração.
Desde Warcraft, entretanto, orcs têm ganhado uma certa redenção na mente do povo. Mas eu não acho que houve uma desconstrução da ideia do orc malvado tão bem feita e bem sucedida quanto Shrek.
Sim, ele é um ogro. Mas ele é verde, grande, e segundo a lenda come pessoas e não conhece nada além de violência. Pra todos os efeitos fantásticos, Shrek é o “orc” mais famoso que existe, e ele é uma pessoa boa.
Então vamos começar a construir o nosso cenário.
O Trono de Ouro se tratará de uma fantasia da era moderna, onde o colonialismo está dando seus primeiros passos, mas ainda não aconteceu de verdade.
A ideia de “Raça” não existe da mesma forma que na história humana, então a palavra “raça” será usada pelo povo desse mundo para designas as diferentes espécies inteligentes que dividem esse mundo com os humanos: Ogros, Elfos, Anões, Duendes, Pequenos e Gnomos.
Látago, o continente principal desse mundo, deve ser grande. Possivelmente com as mesmas proporções que a América do Sul ou talvez a África, com uma diversidade de biomas grande o suficiente pra termos a possibilidade de criar várias culturas de várias etnias diferentes. Indo de savanas a tundras.
Eu sou levemente obcecada com Paleontologia humana, então eu decidi que o berço da humanidade nesse mundo teria que ser o mesmo do mundo real — savanas onde correr por mais tempo que suas presas é mais útil do que subir em árvores. E se as savanas são o berço da humanidade, por que também não o berço da civilização humana?
Savanas são quentes e ensolaradas, naturalmente abrigando pessoas de pele escura que aqui são as criadoras das mais antigas religiões humanas. Essas savanas devem ser o único local onde se vivem exclusivamente seres humanos, reinando sobre essa terra em palácios piramidais longe das outras raças.
Mas humanos são curiosos, ambiciosos e viajantes naturais. Então, como em D&D, Dragon Age e a maioria dos RPGs de mesa, resolvi que seres humanos compõe a maior parte da população desse mundo, e podem ser encontrados em todo lugar.
Eu não sou o tipo de autora que se contenta em escrever mundos perfeitos sem algum tipo de luta de classes. Isso significa que eu vou pegar elfos, oprimir eles e fazer algum tipo de comentário sobre preconceito no mundo real com os coitados?
Não.
Considerando todo o estigma que existe ao redor da figura do orc, acredito que ele seja um símbolo bem mais interessante para construir um argumento sobre preconceito dentro da própria fantasia. Menos como um comentário sobre o mundo real e mais como um metacomentário sobre o próprio gênero. Mas eles serão de ogros em vez de orcs.
O primeiro motivo da mudança de nome é que ogro simplesmente soa mais natural em português. O segundo é que as criaturas são simbolicamente parecidas. E o terceiro é que no Brasil quando a gente chama alguém de ogro, muitas vezes estamos nos referindo a características que orcs e meio-orcs também possuem na fantasia — grandes, brutos, grossos e comilões.
Dos ogros eu também quero tirar a simbologia “selvagem” e a codificação africana. Sua cultura será baseada nos mongóis e nos Khans da antiguidade. Onde ainda há uma atribuição de violência por nós no mundo real, mas uma violência “civilizada” para os olhos europeus, e caracteristicamente asiática.
Eles manterão, entretanto, a tensão que sempre tiveram dentro do mundo da fantasia — sendo tratados como menores e inerentemente violentos pelo resto das pessoas. Mas como vai surgir esse preconceito?
Bom, eu bolei uma historinha.
Há muito tempo atrás, ogros nesse mundo se organizavam como tribos. Essas tribos viviam em constante ameaça de ocupação élfica, então um dia os grandes líderes de todas as tribos resolveram se unir para impedir a incursão élfica. Se tornando extremamente poderosos nesse processo de união, os líderes religiosos entre elfos e humanos declararam uma guerra santa contra os ogros, alegando que eles eram criaturas de caos e violência que precisavam ser controlados.
Assim, o povo ogro foi submetido à vontade de elfos e humanos. Eles tiveram a sua cultura destruída, seus clãs desmantelados, e sua história apagada pelas centenas de anos em que eles viveram em escravidão.
Essa escravidão, entretanto, não aconteceu da mesma maneira que a dos negros no nosso mundo. A escravidão que eles sofriam era similar a escravidão da antiguidade — todo prisioneiro de guerra, ogro ou não, se tornava um escravo, e com a permissão dos seus donos, eles poderiam guardar dinheiro para si para poder comprar a sua liberdade.
Com escravidão sendo eventualmente abolida — tanto através de revoltas armadas quanto através de reformas dos vários sistemas vigentes — ogros também conseguiram se reerguer e reconstruir um pedaço da sua cultura. Entretanto, pelo viés religioso da primeira guerra contra eles, ogros continuam sendo tratados como cidadãos de segunda categoria e são considerados “perigosos demais para manter seus filhos por perto”.
Dessa forma, eu consigo mostrar como preconceito é arbitrário e poderia ter acontecido com qualquer povo dadas as condições certas; E além disso, acabei criando a possibilidade de abrir uma narrativa sobre o medo do terrorismo no ocidente e a islamofobia que prega as nossas cidades nos dias de hoje.
Sabe um outro bicho que RPGs de mesa sempre associam com orcs, que eu amo, e que mereciam mais respeito? Goblins.
Eles são verdes, pequenininhos e travessos! Os de Pathfinder são particularmente bebês e é uma pena que na grande maioria das vezes eles sejam piores do que inerentemente maus. Eles são inerentemente irritantes.
Assim como os orcs, essa inerente irritação pode ser resignificada, como no anime Tensei Shitara Slime Datta Ken. Lá, goblins foram negligenciados por séculos pelas outras raças, sendo tratados só como monstrinhos chatos, mas na verdade eles só querem um lugar pra pertencer!
Então, os chamados aqui no nosso cenário de Duendes são os filhos da união entre ogros e as demais raças.
Se ogros tem pouco lugar na sociedade, duendes não tem lugar nenhum. Constantemente ignorados, maltratados e taxados de ladrões eles costumam viver em pequenas comunidades só entre os seus tentando sobreviver da única forma que a sociedade os deixou sobreviverem: com o crime.
Mas eles podem ser, no fundo, tão bem ou mal-intencionados quanto qualquer pessoa de qualquer raça. E quando a oportunidade surge, estão mais do que dispostos a viver uma vida saudável e construtiva fora dos estereótipos criados para eles.
Os gnomos, elfos, anões e pequenos tem uma construção diferente dessas três raças que discutimos hoje, já que não se relacionam com relações raciais do mundo real. Então eu vou deixar pra falar deles quando o assunto para o qual eles são relevantes surgir.
Você teve alguma ideia interessante de como construir relações raciais dentro do seu cenário? Conseguiu pensar em uma maneira de tratar ou deixar de tratar das relações de raça dentro do seu jogo? Vamos compartilhar e assim aumentar o nosso leque de criatividade e possibilidades!
Agradeço muito pela leitura, e se você gostou, mostra pra alguma amiga.
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Seja como for, amo vocês. Até mais.
Originally published at http://feliciagamingdiary.wordpress.com on December 31, 2019.