O que é o gamer?

Olívia Lobo Guerreiro
13 min readSep 3, 2019
  • 18 de Outubro de 1985. Nintendo resolve lançar o NES nos Estados Unidos como um brinquedo para meninos. Toda a indústria de videogames segue o barco.
  • 8 de Outubro de 1992. Mortal Kombat é Lançado e a política conservadora vai a loucura. A indústria do videogame é processada pelo governo estadounidense.
  • 3 de Fevereiro de 1994. Representantes da indústria provam em corte que videogames não causam problemas comportamentais nas crianças e merecem o mesmo nível de regulamentação que todas as formas de arte e entretenimento. A Enterteinment Software Association (ESA) e a Entertainment Software Rating Board (ESRB) são criadas.
  • 20 de Abril de 1999. Dois estudantes do colégio de Columbine, Estados Unidos, entram na escola com armas automáticas e matam 15 pessoas. A mídia de massa culpa os videogames.
  • Anos se passam. Pessoas que cresceram com videogames em casa se tornam cidadãos comuns da sociedade. Ninguém com exceção de alguns jornais sensacionalistas realmente acredita que videogames causam violência.
  • 1 de fevereiro de 2013. Simon Parkin lança um artigo investigativo no Eurogamer denunciando como videogames são usados para financiar fabricantes de armas de fogo.
  • Entre 2014 e 2016. Fucking Gamergate.
  • 1 de Janeiro de 2019. Jair Bolsonaro assume a presidência do Brasil, e expressa ser um explícito aliado de Donald Trump.
  • 13 de Março de 2019. Vice-presidente Mourão culpa o tiroteio em Suzano-SP, que acontecera algumas horas antes, nos videogames que os assassinos jogavam. A mídia de massa segue o bonde.
  • 15 de Março de 2019. No maior atentado terrorista na história da Nova Zelândia, 51 pessoas morrem nas mãos de um homem gritando “subscribe to pewdiepie”.
  • 24 de Junho de 2019. Gabriela Cattuzzo perde o apoio da Razer por dizer que homem é lixo, a empresa prioriza a segurança dos homens em vez da revolta das mulheres.
  • 29 de Julho de 2019. Presidente Jair Bolsonaro fala sobre “diminuir o imposto do videogame” e classifica via Twitter e entrevistas o “gamer” como seu aliado.
  • 30 de Julho de 2019. Um coach profissional de League of Legends tenta defender o Bolsonaro dizendo que o nazismo já fez muitas coisas boas. Ele foi afastado indefinidamente do CBLol.
  • 28 de Julho até 4 de Agosto de 2019. 13 tiroteios terroristas acontecem em diferentes partes dos Estados Unidos matando um total de 47 pessoas. Um deles, em El Paso, Texas, responsável por 22 dessas mortes, tem um manifesto aberto online onde a frase “Call of Duty” aparece. Dan Patrick, governador republicano do Texas, usa isso como “prova” de que são os videogames que causam esses massacres.
  • 5 de Agosto de 2019. Donald Trump (a quem Bolsonaro se alia) declara que a cultura que cria esses assassinos vem dos videogames.
  • 8 de Agosto de 2019. Felicia ouve essas últimas notícias vindo dos Estados Unidos em um vídeo do Jim Sterling e fica puta da vida.
  • Em qualquer momento dessa timeline. Algum babaca em algum lugar ameaça alguma mulher que trabalha com videogame de morte ou estupro. Algum babaca em algum lugar defende empresas multi bilionárias enquanto reclama de “pay to win”. Algum babaca em algum lugar manda ameaças de morte pra algum desenvolvedor porque o joguinho dele tá atrasando alguns meses. E algum babaca brasileiro posta esse tipo de coisa em alguma rede social:

Isso me faz pensar. O que significa o videogame pra direita conservadora? E quem são os tais gamers com quem o Bolsonaro se alia e Trump se opõe?

Até 85, o videogame não se tratava de algo baseado em gênero. Da mesma forma que pinball apelava para todos os sexos, o fliperama, os computadores e os consoles da Atari não tinham um publico alvo restrito a metade da população. Fliperamas eram voltados para adolescentes atrás de diversão simples e barata fora de casa, computadores de entretenimento se vendiam apenas como computadores, e os consoles da Atari se vendiam como entretenimento familiar. Nada relacionado a videogames era ligado diretamente com meninos. Mas isso tudo mudou quando a nação do fogo atacou o NES foi lançado.

No Japão, o NES (chamado lá de Famicom) nunca foi vendido como um brinquedo — quem dirá para meninos -, mas pra entrar no mercado Norte-americano essa estratégia foi adotada por dois motivos: O primeiro era desassociar o produto daqueles que haviam sofrido com a crise de jogos eletrônicos de 1983. Se vendendo como um brinquedo, consumidoras que havim se arrependido com a compra dos computadores de entretenimento da Atari e demais fabricantes não ficariam tão assustadas ao comprar o produto da Nintendo apesar de ser efetivamente a mesma coisa.

O segundo motivo foi por conta de impostos, que na época pesavam mais em computadores do que em brinquedos. Vender um computador como se fosse um brinquedo tiraria bastante carga tributária das costas da empresa.

Brinquedos, entretanto, eram (e continuam sendo) vistos como algo extremamente segregado entre os gêneros, e nenhuma loja de brinquedos teria como vender o NES para ambos. A caixa cinza e o visual high tech diferente do Famicom original (muito mais amigável com amarelos claros e vermelhos), foi desenhado especificamente para que a caixa fosse colocada nas prateleiras de brinquedos “para meninos” junto com todas as arminhas de plásticos e bonecos de ação.

Por acaso isso acabou coincidindo com uma fabricação sexista do desinteresse feminino por carreiras na área da tecnologia, como explica esse artigo do Washington Post.

Nota

E como diz o ditado, quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas. O mercado de videogames no ocidente se apoiou em ideais de masculinidades tóxicas para sair da crise de 83, iniciaram campanhas completamente dependentes dessa toxicidade como a “guerra dos consoles” e nunca mais largou essa visão de mundo.

Publicadoras de jogos sabem disso, e usam ideais conservadores de uma adolescência masculina moldada pelos anos 80 e 90 para armar os seus consumidores a favor do seu lucro e de suas práticas predatórias.

Em qualquer lugar que você decida criticar o mercado de videogames como só pensando em lucro, provavelmente alguém vai aparecer pra dizer “vc tá falando de uma empresa! claro que ela só pensa em lucro!” como se fosse uma desculpa pra essas empresas poderem impedir a organização de sindicatos trabalhistas e abusar as desenvolvedoras que não tem qualquer tipo de segurança profissional.

A indústria do videogame arma esses consumidores tratando eles como “gamers”. Dizendo que eles são especiais, e que a indústria só faz jogos para “gamers de verdade”. Criando um senso de pertencimento, esses gamers fazem de tudo para proteger esses jogos como um soldado protege sua terra natal em meio a uma guerra.

E por mais que basicamente todo mundo hoje em dia jogue videogames, e que a maioria dessas pessoas sejam mulheres, o “Gamer” como construção da identidade vendida por essas empresas é inerentemente um homem cis, hétero e branco que na sua infância conseguiu um videogame que saiu de uma prateleira de brinquedos para meninos.

Quando o Gamergate começou em 2014, este simplesmente se tratou de um movimento de dar nome aos bois. Os homens que se sentem donos dos jogos começaram a se sentir ofendidos por mulheres e pessoas queer expressando interesse pelo hobby e apontando os problemas inerentes da cultura. Os gamers, sendo treinados como soldados pelas empresas, foram defender a sua “terra natal” dos videogames contra a “incursão feminista”.

Em um artigo na coluna “Game boys” da Real Life Magazine, Vicky Osterweil argumenta que a identidade gamer está sempre preocupada em defender a santidade do “círculo mágico” onde os homens que servem como seus cidadãos e soldados nunca deixaram de ser as crianças que compravam videogames na estante de brinquedos para meninos, sempre tentando defender que “videogames não causam violência” como no caso de Mortal Kombat e da ESRB entre 92 e 94.

E por mais que essa luta tenha sido uma luta boa e justa de se lutar em 94, depois de 2014 ela parou de fazer sentido já que os próprios gamers provaram por A + B que videogames causam sim violência.

É claro que eu não estou falando dos videogames em si. Eu fui fã de Call of Duty desde 2007 até 2014 (olha que coincidência) e nem por isso eu saio por aí atirando em pessoas com um rifle automático. Mas a minha infância e adolescência foram bem diferentes do típico gamer. Quando a Anita Sarkeesian apareceu eu não me senti ofendida por alguém estar aplicando olhares feministas nas coisas que eu gosto. Eu me senti meio “eca” por causa da forma como ela dizia que videogames simplesmente são ruins — e o negócio que eu curto desde criança não tem como ser ruim — mas em princípio eu concordei com a maioria das coisas que ela falava.

Só que a maioria dos gamers não ficou só “eca”. O ódio foi profundo. Se alguém define toda a sua identidade em cima de um produto, quando alguém critica esse produto, a pessoa se sente profundamente machucada e vai “se defender” com unhas, dentes, e rifles automáticos.

O período do gamergate, pra que não conhece, foi caracterizado como uma perseguição sistematizada de mulheres que trabalham na indústria do videogame, com abusos verbais e visuais, afim de fazer com que elas desistissem das suas carreiras.

E mais uma vez eu gostaria de lembrar que todo o histórico de abusos desenfreados que aconteceram entre 2014 e 2016 durante essa crise foi só a evolução mais óbvia do que inevitavelmente aconteceria com a forma como a identidade gamer havia sido construída desde 85.

Por mais que a tragédia em Columbine em 1999 não tenha nada a ver com videogames, as ameaças de ataques terroristas que foram feitas entre 2014 e 2016 e concretizadas em 2019 na nova zelândia com um homem matando muçulmanos enquanto gritava “subscribe to pewdiepie” claramente tem uma motivação baseada nessa construção de identidade de um homem protegendo seu entretenimento e “terra natal” da “invasão” de estrangeiros, mulheres, e pessoas queer.

A identidade gamer é perigosamente próxima à construção de identidades raciais neo fascistas. Ambas se tratam de proteger o status quo sagrado de uma época onde as coisas eram “melhores e mais simples”. Teorizo que seja por essas semelhanças que o discurso de ódio e o bullying sempre foram algo tão comum no mundo do videogame a pesar de, como eu disse antes, quase todo mundo jogar videogame atualmente.

NonCompete tem um vídeo que brevemente fala sobre a facilidade de certos grupos de pessoas descerem o buraco que é o neo fascismo, e querendo ou não “gamers” são um desses grupos.

Não é de se surpreender, portanto, que gamers tenham se atrelado tanto com o Bolsonaro.

O que é um reacionário? É aquela pessoa que não aceita mudanças, e reage de forma violenta a tudo que altere o estado atual das coisas. O gamer, portanto, é um reacionário que defende a santidade dos videogames da forma como eles eram entre 80 e 90.

Outro módulo de reacionários são os conservadores políticos, que veem tudo que é novo no cenário político (e qualquer aspecto da vida humana já que tudo na vida de criaturas sociais é político) como perigoso e que precisa ser destruído.

Tanto Bolsonato quanto Donald Trump entram nessa categoria, mas vindo de culturas diferentes as formas como eles se relacionam com videogames é diferente também.

No começo de Agosto, Trump resolveu passar vergonha dizendo que a culpa da crise de tiroteios diários nos Estados Unidos é dos videogames, ignorando toda e qualquer responsabilidade do governo e sua própria retórica fascista que incentiva o terrorismo doméstico.

Mas isso é carta velha pro mundo dos videogames lá nos States. Desde sempre o governo tem culpado todo tipo de mudança cultural por qualquer ato violento oriundo de negligência estatal desde que começaram a fazer histórias em quadrinhos.

Como explica James Stanton no tal vídeo que saiu dia 7 de agosto que me revoltou com essa história toda, todo esse rolê de culpar videogames pelas coisas horríveis que pessoas horríveis fazem com estranhos serve apenas de distração.

Por um lado, nos distraímos da responsabilidade do governo sobre os problemas sistêmicos que causam esse tipo de violência. Mas por outro lado, também nos distraímos de todas as coisas horríveis que a indústria de videogames faz com seus empregados e seus clientes, tentando defender a arte dos jogos e talvez ignorando o quanto essa arte foi deturpada no decorrer dos anos pra causar e justificar sofrimento.

Mas isso só diz respeito ao Trump. O Brasil não tem um problema de terrorismo doméstico (ainda) e não existe motivo pra ele usar o videogame como artifício de distração política como Trump faz. Ele pode, inclusive, se chamar de gamer, e capitalizar de uma maneira diferente as tendências reacionárias dessa comunidade.

Os Gamers, como a gente já foi levada a entender no resto da matéria, não gostam de mudança. O Bolsonaro não gosta de mudança. Gamers e Bolsonaro saem correndo felizes e de mãos dadas pra terra onde nada nunca muda (exceto o clima).

Bolsonaro de alguma forma (não me perguntem como, porque ele é um mentecapto) identificou no gamer uma base eleitoral forte graças a esse desgosto em comum. Nas últimas semanas de agosto, O Gamer brasileiro estava discutindo como eles estavam felizes com a redução de impostos sobre videogames sendo efetivamente aprovada pelo governo Bolsonaro, ignorando completamente todos os crimes ambientais sendo cometidos na Amazônia pelo mesmo governo, como se os jogos deles fossem mais importantes do que o ar que eles respiram.

E pro Gamer, de fato o jogo é mais importante que o ar. Aqueles que adotam a identidade gamer sempre falam sobre como trocariam qualquer coisa pelos videogames que eles tanto gostam de jogar.

Para aqueles que resumiram sua identidade ao redor de um produto, nada importa a não ser a saúde desse produto. Leon Martins tem um vídeo interessante falando sobre como a diminuição do IPI pra videogames é bom pro mercado de forma geral, mesmo que não se reflita em diminuição de preço pro consumidor, mas qualquer pesquisa sobre isso no youtube pra qualquer criador de conteúdo além do Leon não vai mostrar nada além de gamers comemorando a redução do imposto sem saber realmente o que isso significa.

Dentro do meu grupo de amigas houve uma controvérsia sobre um texto lançado pela equipe de Ooblets (formada por um total de duas pessoas em um apartamento pequeno) explicando a exclusividade do jogo no PC via Epic Store.

Eu não vou linkar o texto por motivos de evitar tretas sempre que possível, mas o que aconteceu é que, sem o contexto apropriado de como funciona a comunidade gamer e a relação dessa comunidade com as desenvolvedoras de videogames, o texto simplesmente parece condescendente e gratuitamente ofensivo. Entretanto, do que o texto se tratou na verdade foi de defesa pessoal desses dois indivíduos com medo dos abusos que eles inevitavelmente receberiam dessa comunidade. E o abuso aconteceu do mesmo jeito.

Gamers tem um histórico de tratar mal as pessoas que fazem videogames. O próprio gamergate se tratou disso com ataques contra pessoas como Zoe Quinn e outras mulheres que fazem videogames. Os casos de gamers tornando a vida de pessoas que fazem videogame um inferno são demais pra eu conseguir escolher alguns pra falar pra eu escolher só um. Eu posso recomendar isso, isso e isso como leitura geral sobre o problema, mas se for pra escolher exemplos, não tem exemplo melhor do que o próprio caso do Ooblets, como a equipe relata no blog do jogo.

Ameaças de morte e ataques terroristas, chantagens, mensagens explícitas e ofensivas feitas pra denegrir a saúde mental da vítima são táticas comuns usadas pelos gamers mais fanáticos afim de forçar as suas desenvolvedoras “favoritas” a fazer o que eles querem e manter o mundo dos videogames como ele sempre foi desde 85: Exclusivo para garotos. E portanto, machista, homofóbico e infantil.

Em resumo, portanto, pode se dizer que o gamer é o soldado do status quo do mundo dos videogames, que não parará em momento nenhum para defender a santidade do seu círculo mágico baseado em um passado que nunca existiu, bem como fascistas e nazistas faziam antes deles, e neo fascistas fazem agora.

Existe muito mais que precisa ser dito sobre a identidade gamer, mas eu já falei todos os aspectos principais e sinceramente esse assunto já me deprimiu o suficiente.

Mas espero que tenha conseguido deixar claro que quando as pessoas dizem que “gamer nem é gente” não quer dizer que essas pessoas não gostam de quem joga videogame. Quer dizer que essas pessoas são desconfiadas das atitudes de um grupo social e cultural que se baseia na adoração de produtos velhos, épocas melhores que nunca existiram, e na violência indiscriminada para defender essas coisas.

Eu amo videogames. Saí do berço jogando videogames e nunca parei. Não existe nenhuma forma de arte nessa vida que preenche mais a minha alma do que jogos. Mas ser gamer? Provavelmente nunca fui e nunca serei. E se eu ocasionalmente me chamo de “blogueirinha gamer” é justamente pra provocar o que se associa com blogueirinhas (femininas e competitivas) e gamers (machistas e reacionários). Um axioma proposital que tira sarro dessas identificações consumidoras.

Esse texto foi principalmente inspirado por “ No shit, video games are political. They’re conservative. “ escrito por Josh Tucker no site The Outline, e se você fala gringuês eu recomendo dar uma olhada.

E se você quiser me ajudar a falar mais coisas sobre identidade consumidora, gênero, jogos e política, considere dar uma força pra mim em qualquer um desses meios de financiamento coletivo:

E se me permitem, eu gostaria de fazer um pedido bastante sincero.

Eu to passando por alguns momentos difíceis agora, e estou precisando de renda com certa urgência. Então, de todo coração, quero pedir que, mesmo que não possam contribuir financeiramente, divulguem os meus textos. É só com mais olhos aqui que esse trampo vai crescer em proporções boas pra vocês e pra mim também.

Além disso, se vocês souberem de vagas de trabalho pra redação, edição de vídeo, ou mídia social em Curitiba, por favor me indiquem. Eu vou colocar meu currículo na página das contribuições pra quem quiser me ajudar com isso.

No mais, amo vocês e muito obrigada pela atenção.

Blessed be.

Originally published at http://feliciagamingdiary.wordpress.com on September 3, 2019.

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