Resenha: Black Mirror Bandersnatch

Olívia Lobo Guerreiro
8 min readFeb 14, 2019

“Black Mirror é uma série insuportável.” Disse Thiago Baptista, e eu estrondosamente gritei “SIM, OBRIGADA” porque eu detesto essa série. Mas… Eu gostei de Bandersnatch? E eu não vi ninguém falando das mesmas coisas que eu acabei gostando desse filme-jogo.

Versão sem Spoiler: É divertidinho. Se você gasta 2 horas da sua vida discutindo política com estranhos na internet, você pode gastar 2 horas num joguinho bobo em um serviço que provavelmente você já assina e não tem que pagar nada a mais. ¯\_(ツ)_/¯

Mas fica o aviso de conteúdo pra quem pode sofrer triggers com algumas coisas mostradas: drogas alucinógenas, suicídio, gore.

Okay, agora o texto de verdade.

É divertidinho. Mas não do jeito que eu esperava.

Pelo que a galera tava falando parecia ser só mais um jogo tosco do Sega-CD em FMV ou uma versão mais curta de um jogo do David Cage, mas é bem mais interessante do que isso. A impressão que eu tive assistindo o negócio não é que se tratava de um jogo filmado, e sim um filme de terror divertido com uma brincadeirinha nova. E eu geralmente advogo que pra você chamar algo de jogo você só precisa do mínimo de interação possível, e Bandersnatch tem mais do que o mínimo de interação possível, mas a experiência que ele traz é muito mais próxima de um filme do que de um jogo. E é um filme bem okay.

Sabe aqueles filmes de terror ou de suspense meio bobo que você assiste com a namorada quando nenhuma das duas tá afim de investir muito da sua capacidade crítica e na real é só uma desculpa pra ficarem juntas debaixo da coberta? Esse é o sentimento que eu tive com Bandersnatch. E considerando que é parte de Black Mirror, a série mais insuportável entre 2016 e 2018, isso foi uma grande evolução.

Stefan, o protagonista, é um jovem desenvolvedor de videogames no começo dos anos 90 que acabou de mandar o pitch do seu primeiro projeto pra uma publicadora famosa. Esse projeto se chama Bandersnatch, e se trata de uma adaptação do homônimo livro-jogo favorito do rapaz. Mas o projeto acaba consumindo ele ao ponto de que ele fica BIRUTA. A partir daí você pode fazer escolhas pelo protagonista que mudam o final, mas só existe um final de verdade. Todos os outros finais vão “rebobinar” o filme pra que você faça as escolhas que cheguem no final certo.

Bandersnatch se trata da clássica história do autor maluco que se afoga tanto na própria obra que nem ele nem nós na audiência podemos ter certeza da realidade diegética. Essa história existe desde que a gente resolveu criar a ideia de autor. Inúmeros livros, filmes, e até alguns videogames já trataram desse assunto de maneira bastante competente. Eu pessoalmente acho esse tipo de história meio burra, mas não é nada particularmente ofensivo. Eu consigo me divertir vendo A Janela Secreta, e consigo me divertir vendo Bandersnatch.

O que torna Bandersnatch tão interessante pra mim não é a história em si ou suas gimmicks de “escolha sua própria aventura”, até porque não existe escolha de verdade já que o protagonista sempre rebobina o filme quando ele acha que você fez a escolha errada. O que torna ele interessante pra mim é que se trata de um game designer! E isso é (ou deveria ser) a novidade de verdade.

Quem aqui que trabalha ou já trabalhou com videogame não sabe da tortura psicológica que é decidir fazer um jogo muito maior do que você ou sua equipe tem capacidade de fazer? Cara, o filme não precisa me colocar no lugar do Stefan porque eu fui o Stefan!

Tu tá com uma deadline super apertada, que no caso dele é 2 meses e isso é simplesmente ridículo, e não tem nem 1% do seu roteiro pronto! A pessoa que você mais admira no rolê tá te observando e provavelmente todo o seu futuro tá em jogo nesse projeto. E pra piorar a relação com a sua família é uma bosta e você já tem problemas psiquiátricos e dificuldade de confiança. Se isso não é um filme de terror da vida real, eu não sei o que é. Bandersnatch só exagera a história pra que ela possa entreter, e não só triggar estudantes de Jogos Digitais lembrando que tem que terminar o projeto do trabalho E o da faculdade daqui um mês.

Na verdade, a gente já viu uns desenvolvedores da vida real ficarem meio birutas porque o jogo era complexo demais e consumiu parte da vida deles. Jonathan Blow pirou tanto na ideia de puzzles de linha que, segundo entrevistas que ele deu falando sobre The Witness, ele começou a ver esses puzzles onde não existia nenhum. E se o Jonathan Blow não tivesse só ficado paranóico, mas virado um serial killer?

É um exagero esdrúxulo, mas admita que é uma ideia divertida de se assistir no âmbito da ficção. E um tanto catártica se você já esteve nessa situação específica de estresse com joguinho.

As escolhas que você tem que fazer durante o filme não são escolhas. Elas são ilustrações feitas pra te imergir na mentalidade do Stefan que confia tão pouco em si mesmo que acaba criando uma entidade, a audiência, pra justificar a sua desconexão com a realidade e as suas próprias ações.

Ao contrário de outros episódios de Black Mirror, Bandersnatch não faz nenhum julgamento de valor sobre a tecnologia envolvida na história. Ele tenta argumentar que ela é supérflua, mas dizer que escolha em videogame é supérflua é tanta novidade quanto dizer que Jesus morre no meio da bíblia.

Por ser um “hot take” tão morno e sem graça nessa altura do campeonato, onde a maioria das pessoas já entrou em um consenso sobre o assunto, o filme não tenta assumir a posição presunçosa do resto de Black Mirror de acreditar que sabe mais sobre a realidade humana do que a sua audiência.

Todo mundo com o mínimo de contato com videogames já falou sobre isso. É um assunto tão batido que não tem como eles fazerem julgamento de valor. E isso deixa muito mais tranquilo só ver a história e tirar uma pira comparando com o resto de Black Mirror.

E é um filme muito bem dirigido, com quadros interessantes, boa atuação, e uma certa incoerência de estilos feita justamente pra servir como uma outra ilustração do estado mental do protagonista. Além de parodiar os outros filmes interativos que já estão no Netflix e os jogos da Telltale games que claramente serviram de inspiração pra essa tecnologia nova.

O que me deixa preocupada em relação às críticas de Bandersnatch ao redor da internet, entretanto, são as pessoas que dizem que o final de zoeira é sério. E começam a comparar o filme com 1984 ou Matrix.

Em dado momento você pode “falar” pro Stefan que você está assistindo ele no Netflix e explicar pro moleque, que vive no começo dos anos 90, o que caralhos é um Netflix.

É uma piada. Todo jogo de multipla escolha tem um galho de piada. Mas as pessoas levam isso a sério como se Black Mirror estivesse sendo crítico… De si mesmo? Mas ele não critica nada. Os dois finais aos quais isso leva não são nada além de engraçados, e quando eles chegam, o Stefan rebobina o filme de qualquer jeito pra você fazer a escolha “certa”.

O problema desse tipo de crítica é o mesmo problema que Dan Olson aponta em relação as críticas à Aniquilação, também disponível no Netflix.

Muitas pessoas focam na informação superficial da obra. A “lore” por assim dizer. Quando na verdade o filme quer explorar suas personagens, não necessariamente o cenário onde elas estão.

Todas as decorações sobre ETs coloridos em Aniquilação ou sobre escolhas em Bandersnatch não passam de ilustrações pro estado mental e pra jornada que as protagonistas de ambos os filmes passam.

O ponto de Aniquilação não são os ETs coloridos. São as mulheres enfrentando seus traumas uma ao lado da outra.

Igualmente, o ponto de Bandersnatch não são as escolhas, é o Stefan não conseguindo lidar com estresse e perdendo confiança em si mesmo.

Nesse sentido de usar mecânicas de jogo como ilustração de um estado mental paranoico, Bandersnatch faz um trabalho muito melhor do que a maioria dos videogames. E ainda assim, ele prioriza ser um filme antes de um jogo.

Nesse sentido também eu acredito que Bandersnatch é um pioneiro de um novo tipo de tecnologia e de contar histórias. Finalmente, tanto a indústria de videogames e a indústria de filmes tem um elo de verdade QUE NÃO É A PORRA DO DAVID CAGE! Alguém fazendo filme-jogo que realmente tenha capacidade de mostrar isso pro público geral e não seja um COMPLETO PATETA igual o David Cage tem o meu respeito.

A equipe por trás de Bandersnatch sabe como jogos funcionam. Ou no mínimo entendem as noções de gatilhos, chaves e galhos o suficiente pra fazer uma história maneira com esses conceitos. E a equipe por trás de Bandersnatch óbviamente sabe como cinema funciona. É a galera de Black Mirror.

O David Cage não entende nenhuma dessas duas coisas, e quanto antes a gente tirar ele do troninho que ele fez pra si mesmo mais feliz eu vou ficar.

Meu veredito final pra Black Mirror: Bandersnatch é:

Comodore 64 / 10

Esse texto foi um pouco mais light do que os anteriores, mas eu queria bastante falar desse filme-jogo porque eu senti que ninguém mais tava falando o que pra mim parece óbvio.

Se você gosta desse meu rolê por aqui, considere dar uma graninha no Catarse ou no Paypal e eu serei eternamente grata!

Originally published at feliciagd.com on February 14, 2019.

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