She-Ra, Marvel e As Princesas Sapatão

Olívia Lobo Guerreiro
19 min readApr 4, 2019

Final de abril vai estrear o novo filme dos Vingadores, e eu até pensei em entrar no trem do hype e fazer algo relacionado aos filmes da Marvel. Mas pra que bater em cachorro morto?

Filmes da Marvel não são nada além de bons. Filmes gostosos de ver no cinema e comentar com os amigos, mas no final das contas é o mesmo filme sendo lançado 3 vezes por ano.

Capitã Marvel, entretanto, me intrigou. Não sobre o filme em si — ele é exatamente como todo mundo esperava que ele fosse — mas sobre uma outra super heroína loira consideravelmente parecida. E o produto criado para promover essa outra super heroína é muito mais interessante pra mim como crítica midiática do que a Capitã saiya-jin.

Essa super heroína é a She-Ra de She-Ra E As Princesas do Poder, desenho animado lançado em 2018 na Netflix que ganhará uma segunda temporada na mesma semana do lançamento de Vingadores: Ultimato no final desse mês.

Então como uma boa crítica interessada em trabalhos audiovisuais envolvendo super-heroínas eu vou falar sobre She-Ra e todas as suas semelhanças e diferenças com as heroínas da Marvel, do Steven Universo e dos demais trabalhos de Noelle Stevenson.

Noelle Stevenson

Eu falo muito sobre morte do autor, e deve ser estranho pra quem já acompanha os rolê aqui me ouvir falando sobre uma autora primeiro pra falar de uma obra. Mas nenhuma obra pode ser divorciada de qualquer um de seus contextos. E, querendo ou não, autoras fazem parte desse contexto.

Boa parte das ideias por trás de She-Ra pode ser traçadas de volta para os outros trabalhos de Stevenson na BOOM!, na Marvel, na DC e como uma cartunista independente.

Essa princesa com cabelinho de sapatilha começou a carreira escrevendo gibis de Hora da Aventura, mas ganhou fama de verdade depois da sua publicação independente de Nimona, que havia começado como uma webcomic qualquer, mas desde a sua adaptação no formato de Graphic Novel virou um sucesso cult em todos os espaços nerds.

Esse sucesso foi rapidamente seguido por Lumberjanes, outra produção maravilhosa de protagonismo feminino, e alguns trabalhos licenciados envolvendo Sleepy Hollow (o seriado de 2013), Runaways, Thor e a Liga da Justiça.

A principal motivação por trás da obra de Stevenson sempre foi a expressão de feminilidades não tradicionais, sendo que Nimona é quase uma versão fantástica da sua própria experiência como cosplayer mulher que fazia personagens masculinos.

E voltando os olhos para o seu trabalho na Marvel, a encarnação da personagem Jane Foster como Thor pode não ter sido criada por Stevenson (esse crédito ainda é de Jason Aaron e Russell Dauterman) mas é fácil perceber como a personagem apelava para as suas sensibilidades e como foi uma decisão óbvia o convite da Marvel para que ela escrevesse uma história inédita para a edição anual de Thor de 2015. Afinal de contas é uma mulher de 2 metros usando armadura e nome de homem. E o trabalho dela em Lumberjanes deixa muito claro como ela seria extremamente indicada para escrever a série de Runaways durante o evento das Guerras Secretas.

Design de personagem

O design da She-Ra em As Princesas do Poder não é tão diferente assim do material original — aquele desenho escroto dos anos 80 com uns brinquedos piores ainda. Mas é difícil pra mim não desenhar alguns paralelos com Thor e pensar que existe alguma influência aí.

É interessante pensar no design de personagem da She-Ra como uma reconstrução de feminilidade. Reacionários (que provavelmente nunca assistiram o desenho original e só fingem que viam) tinham medo de que She-Ra se tornasse uma “ferramenta de doutrinação lésbica” já que a nova personagem não usa decote e tem um short por baixo da sainha. O problema das críticas apontadas por esses reacionários é que os trailers foram cuidadosamente editados para não mostrar a parte de design que REALMENTE torna a She-Ra nova uma super-heroína única.

Pra quem não sabe (e a maioria dos reacionários não sabe) She-Ra é uma entidade sobrenatural que existe no mundo dos Mestres do Universo como uma protetora da paz e do equilíbrio do universo. Essa entidade se manifesta na princesa do Castelo de Grayskull, chamada Adora, quando ela empunha a Espada da Proteção e grita “Pela Honra de Grayskull!”

Acontece que Adora foi sequestrada muito jovem pela Horda do Mau, onde ela foi criada por toda a sua vida até eventualmente escapar e conhecer a grande rebelião de Etéria contra as forças da Horda.

Adora, no começo do desenho, portanto, é um soldado da Horda do Mau. E no reboot em questão, ela reflete a aparência de um soldado qualquer, com cabelo preso e um uniforme meramente funcional bastante comum para “exército dos vilões” em qualquer desenho de crianças.

Essa parte eu não acredito que era pra ser subversiva. Ela acontece exatamente da mesma forma que acontecia no desenho dos anos 80 (tirando que nos anos 80 ela não usava calças por algum motivo). Mas de alguma maneira, acaba sendo. Nesse mundo meio fodido que a gente vive, ser uma mulher que não existe para satisfazer o desejo sexual de homens é subversivo. Usar cabelo preso e uma roupa que não é reveladora, por algum motivo, é uma expressão de feminilidade alternativa.

Não digo isso apenas por conta dos reacionários reagindo ao desenho sem embasamento algum e nem tendo assistido o negócio (apesar de consistir boa parte do argumento). O quanto a Adora é diferente das outras mulheres em sua simplicidade também é contrastante dentro do próprio universo onde ela existe.

As outras duas personagens principais da Horda a quem somos introduzidas no começo da série apresentam um tipo de feminilidade muito menos sutil do que a Adora. Primeiro com Felina usando collants apertados e coloridos, e Sombria usando um longo vestido de aparência imponente e ameaçadora.

Adora também é diferente das mulheres do lado da rebelião que usam vestidos coloridos e tem nomes do tipo “Cintilante”. Até o único homem relevante pra trama até esse momento, Arqueiro, é infinitamente mais feminino do que a Adora usando uma porra de um crop-top com estampa de coração.

Mesmo assim, a parte mais revolucionária do design da She-Ra é depois que ela se transforma e começa a interagir com as outras personagens.

Presumimos que Adora, Cintilante, Arqueiro e Felina tenham alturas normais comparadas com outras adolescentes humanas no mundo real. Mas quando She-Ra aparece ela é claramente diferente das personagens que vimos até o momento. Ela é uma mulher de tutu com DOIS METROS DE ALTURA, uma massa muscular bem maior do que das outras mulheres, chegando a rivalizar os homens, empunhando uma espada ridiculamente gigantesca.

Como uma mulher trans alta e consideravelmente mais corpulenta do que minhas colegas cis, essa She-Ra criada por Stevenson me passou muito mais positividade corporal do que qualquer outra mídia de massa “feminista” por aí.

E, me desculpa, mas ela parece muito com a Thor. Uma mulher magra e discreta que pega uma arma fálica mágica pra virar uma louraça musculosa de 2 metros de altura com uma roupa espalhafatosa que não revela nada além dos bíceps e arrebenta tanques de guerra no soco? Cuzão, se esse não é o meu rolê, nada é.

Metamodernidade

Metamodernismo é como está sendo chamado o principal movimento artístico que se iniciou em meados de 2000. Este ganhou suas formas mais conhecidas por volta de 2010 com a propagação da cultura de internet para os meios mainstream e a mudança de como as pessoas se relacionam com conteúdos de “massa”. Talvez você conheça a epítome da obra metamoderna como “meme”.

Em 2010, Luke Turner, em parceria com outros artistas, publicou o Manifesto Metamoderno, que descreve o metamodernismo como “uma condição mercuriana entre e além da ironia e da sinceridade, da inocência e do conhecimento, do relativismo e da verdade, do otimismo e da desconfiança, em busca da pluralidade de horizontes díspares e elusivos.”

O que isso significa é que o Metamodernismo surgiu como algo que está entre, e ao mesmo tempo além, da sinceridade e realismo do movimento modernista, e da ironia e niilismo do movimento pós-modernista.

She-Ra e As Princesas do Poder é um ótimo exemplo de mídia metamoderna tanto em produção quanto dentro do próprio texto.

Perdoem o cinismo, mas não existe nada de valor na She-Ra original. Ela não passava de um comercial glorificado dentro do capitalismo mais selvagem que esse mundo já viu. E dizer que ela fazia parte de qualquer movimento artístico que poderia existir nos anos 80 seria pura piada. A beleza de She-Ra não existia na obra, mas nas imaginações e memórias das crianças que brincavam com ela.

O valor metamoderno de PdP (eu vou falar do seriado da Netflix assim agora porque é um saco escrever “She-Ra e As Princesas do Poder” toda vez) existe nessa aparente contradição de se tratar de uma adaptação valiosa, positiva e artisticamente relevante de um comercial americano da era Reagan.

PdP não poderia ser mais diferente da série dos anos 80. Todas as personagens desse desenho são brinquedos, e feitas para não ser nada além de brinquedos. Mas coloque esses brinquedos nas mãos de uma das cartunistas mais bem sucedidas da nossa geração e nós ganhamos personagens de verdade.

A trama de PdP é um tanto… Patética. Os vilões se chamam “A Horda do Mau”. Não da pra esperar muita nuance de uma história onde o grupo de antagonistas literalmente se chama “Horda do Mau”. O aspecto metamoderno do desenho se faz extremamente óbvio quando quando Adora descobre que a horda é… Do mau… E tenta convencer Felina a mudar de lado. Tentativa para a qual Felina simplesmente responde “Duh! Acabou de descobrir isso?”. O desenho se mostra cínico diante de sua própria premissa, mas engaja com ela de forma extremamente genuína nos relacionamentos interpessoais entre as personagens, que serão melhor detalhados mais tarde.

PdP conhece o seu passado, e tira sarro dele ao mesmo tempo que celebra as memórias que ele criou. E mesmo assim, recria um universo de personagens extremamente cisheteronormativos para um novo contexto que talvez não faça sentido para as gerações dos anos 80, mas com certeza faz para as atuais.

O sexto parágrafo do Manifesto Metamoderno diz “O presente é um sintoma do nascimento simultâneo do imediatismo e da obsolescência. Hoje somos todas tão nostalgistas quanto futuristas. A nova tecnologia nos permite experiência e promulgação simultânea dos eventos a partir de uma multiplicidade de posições. Longe de sinalizar a sua destruição, essas redes emergentes facilitam a democratização da história, iluminando as bifurcações de onde as suas grandes narrativas podem navegar o aqui e agora”.

Minha interpretação desse parágrafo diz respeito ao que eu acredito que seja o atual movimento das gerações milenares de ressignificar os seus passados com ideais e sensibilidades presentes, revivendo quadrinhos e desenhos antigos nas telas de cinema e televisão com uma visão progressista da humanidade que de alguma forma sente saudade de ser criança.

Entre as sensibilidades milenares e progressivas que talvez não tinham espaço na mídia de massa dos anos 80, estão as preocupações, culturas e identidades LGBTQI+. E PdP é um desenho extremamente gay. Talvez não tão explicitamente como a última temporada de Steven Universo, mas queer de uma maneira que SU simplesmente sugere mas nunca realmente explora.

Uma das principais características do metamodernismo pós 2010 é a reimaginação queer de coisas que no passado não eram relevantes mas hoje são graças à nossa saudade do passado. Saudade transformada pelos nossos desejos pelo futuro.

PdP ainda é um desenho comercial feito com o objetivo de gerar lucro, mas diferente do antigo desenho, também se trata de uma obra artística afim de fazer um comentário social. Pela forma como PdP trata os relacionamentos entre as suas personagens, creio que ele seja um passo ainda mais importante para a normalização da sociedade queer entre pessoas jovens do que o próprio Steven Universo foi.

Relações fora do padrão

A maioria esmagadora das personagens desse desenho são mulheres. Na verdade eu acho que em todos os 13 episódios aparecem 5 homens, e ele provavelmente fracassaria num teste de Bechdel inverso.

Todas essas mulheres são incrivelmente diferentes umas das outras, desviando de qualquer ideia de homogênea de feminilidade da mídia norte-americana. Temos mulheres gordas, magras, altas, baixas, jovens, velhas, de pele escura e clara, apresentando todo tipo de personalidade e caracterização.

As animações de todas as personagens dizem respeito a quem elas são. As acrobacias de Felina mostram a sua habilidade de desviar dos assuntos difíceis da sua relação com a Adora, e a rigidez dos movimentos de Adora mostram o quanto ela é tímida e insegura. Cintilante é uma adolescente em fase de revolta e o Arqueiro é o melhor amigo de todo mundo sempre de braços abertos pra receber todos no seu coração — literalmente.

Uma proporção tão grande de mulheres pra tão poucos caras meio que obriga que as relações construídas no decorrer da série sejam entre mulheres. O tipo de relação que Stevenson já teve muita experiência escrevendo em Lumberjanes e Runaways.

Não apenas isso, elas em grande maioria elas são mulheres jovens, algumas até adolescentes e pré-adolescentes, descobrindo o mundo ao redor dos seus amigos… E amantes.

A relação entre Felina e Adora, o principal gerador de conflito na série, é narrada verbalmente como uma história entre duas irmãs que se desvencilharam por discordâncias ideológicas. Entretanto ela é narrada VISUALMENTE como o término de um namoro.

Felina e Adora dormiam na mesma cama, fugiam juntas do quartel para ficarem sozinhas, e quando se separaram Felina sentiu-se abandonada, traída e trocada por outras mulheres que de repente haviam aparecido na vida de Adora.

Com frequência as duas flertam visualmente. Até nas lutas entre elas os seus rostos estão sempre extremamente próximos, e o conflito interno delas estarem lutando contra a pessoa que amaram (e provavelmente ainda amam) é aparente a cada frame da animação. Em todo episódio em que as duas estão juntas existe algum momento onde elas parecem que vão se beijar.

Voltando à comparação com Steven Universo, a não ser que você compreenda que fusão é uma analogia pra sexo, ele quase não mostra as complicações que existem em um relacionamento romântico de verdade, ainda mais quando ele acaba.

A principal relação romântica em Steven Universo (e podemos argumentar que é a única relação realmente romântica no desenho) é entre Ruby e Sapphire. E tudo sobre elas basicamente se trata da narrativa aprovada pelo movimento LGBT liberal de que o “casamento gay” funciona do mesmo jeito que um casamento hétero e portanto deve ser tratado com o mesmo respeito. E por mais que “gays” possam ter relações parecidas com aquelas nascidas da heteronormatividade, principalmente entre homens, elas estão longe de ser a maioria. Por isso LGBTs radicais de esquerda argumentam que a legalização do “casamento gay” é uma forma de apaziguar protestos por igualdade de verdade e não faz nada para legitimar a liberdade de gênero, sexualidade e amor na sociedade atual.

O relacionamento entre Adora e Felina não é bonito. Não é necessariamente tóxico e muito menos abusivo, mas não é, de forma nenhuma, bonito. E não empurra pra frente nenhuma agenda a favor do “casamento gay” ou do “amor” heteronormativo tão frequentemente mostrado em obras com público alvo LGBT.

Nem são a favor da ideia heteronormativa do “casamento gay” os relacionamentos onde Adora se encontra depois da sua separação de Felina. Adora frequentemente divide carícias extremamente íntimas (apesar de não chegar ao ponto de beijos na boca) com Cintilante e Arqueiro. E os relacionamentos que Felina se encontra depois da separação da Adora, com Scorpia.

As relações entre Cintilante e Arqueiro também são extremamente interessantes, pois cintilante sente ciúmes do Arqueiro, com quem ela troca intimidades bastante próximas e corporais. Sendo que o arqueiro claramente sente tesão por Perfuma, tem uma crush no cara hétero e perto do final da temporada flerta com outro rapaz.

Na verdade, Arqueiro é um personagem extremamente interessante porque ele é o estereótipo do “melhor amigo gay” desde design visual até comportamento, animações e falas. Mas ele claramente curte mulheres. E eu luto por um mundo com mais heteroviados (okay, ele é provavelmente bi, mas meu ponto persiste).

Até o casal hétero, formado por Serena e Falcão do Mar, não é exatamente normativo. A princípio parece que Serena simplesmente tolera a existência do Falcão, mas eles realmente se gostam e trabalham como parceiros, de igual pra igual, pra resolver os problemas em que se metem.

E eu tenho que falar que a dublagem brasileira torna todas essas relações ainda mais sensacionais. Por algum motivo que eu não conheço mas agradeço aos deuses todos os dias, todas as dubladoras fizeram essas personagens parecerem estereótipos diferentes de alunas da Universidade Federal, e eu AMO tentar adivinhar em qual curso a nova personagem está e em que ano e com qual galera ela anda.

Todas essas relações são apresentadas verbalmente como “amizades”, mas visualmente é difícil não pensar que se traram de relações poliamorosas, com formas diferentes e decididamente queer de amor e intimidade.

As relações entre as personagens jovens e as adultas também é bastante interessante, já que Sombria e Rainha Ângela são basicamente mães solteiras traumatizadas tendo que cuidar das suas filhas sozinhas ao mesmo tempo que lidam com esses traumas.

Recepção Popular

She-Ra é um caso interessante de recepção popular, principalmente pelas controvérsias que ele causou entre julho e novembro de 2018 antes mesmo do desenho de verdade aparecer.

Não é novidade que cultura pop sempre que possível se transforma num campo de batalha político, mas tanto a direita quanto a esquerda pareciam de alguma forma não gostar da ideia de que o desenho ia sair.

A esquerda se encontrava cínica com a ideia de rebootar um desenho notoriamente sexista da era Reagan e não via propósito na existência dele. E a direita… Bom, a direita tava berrando “E O DECOTE?”.

O problema que aconteceu na época é que a Esquerda ignorou as reações da direita como sendo simplesmente sobre um desenho escroto que ninguém deveria realmente dar atenção. Mas acontece que quando homens reclamavam da falta de decote da nova She-Ra e que ela “parecia uma lésbica” nenhum desses homens estava realmente falando da She-Ra.

Hoje temos mais provas do que o necessário de que a revolta é a nova propaganda. E quando esses homens reacionários procuravam botar defeito no reboot eles não estavam realmente falando de desenho nenhum. Eles estavam recrutando outros homens para que fizessem parte da nova direita.

Se você procurar no YouTube vídeos de canais reacionários falando mal da nova She-Ra você irá notar que nenhum deles realmente assistiu ou realmente se importava com She-Ra clássico. A maioria deles nem se quer tem idade pra ter assistido She-Ra clássico, e os que tem não poderiam ter assistido sem ter sido caçoados na escola e experimentado em primeira mão como machismo funciona.

Toda essa revolta foi fabricada por propagandistas reacionários como uma forma de iniciar homens que de alguma forma conheciam a She-Ra, por ter assistido com a irmã ou por associação com He-Man, de que esse reboot é uma traição à obra original.

É um discurso de abertura para normalizar, não uma crítica midiática baseada em intenção autoral, mas um ódio às mulheres e à feminilidade. Não é uma tentativa de realmente falar do desenho e criticá-lo, mas criticar a independência feminina, e que podem existir mulheres que não servem apenas para agradar o olhar masculino. É um discurso de abertura para normalização da misoginia e radicalização dos homens que por acaso não vão com a cara do reboot.

Esse tipo de introdução à babaquice foi descrito, na situação específica da She-Ra por Thought Slime no seu vídeo “ We Don’t Talk About She-Ra “. Mas desde as tragédias em Suzano no estado de São Paulo e em Christchurch na Nova Zelândia, outros pesquisadores independentes tem chamado esse tipo de cooptação pelo que ela realmente é: Terrorismo.

Especificamente, Terrorismo Estocástico. E se você quiser aprender mais sobre terrorismo estocástico você pode aprendem mais na série de vídeos do Emerican Johnson sobre o assunto: Parte 1 e Parte 2. É um assunto muito mais complexo do que eu me sentiria confortável abordando numa resenha de She-Ra, mas é importante mencionar que esse tipo de terrorismo se inicia com esse tipo de conteúdo que normaliza o ódio e justifica a reação violenta.

O que acaba se tornando particularmente curioso, entretanto, nessas especulações reacionárias sobre o andamento da obra, é que ela acabou sendo mais verdadeira do que os sonhos mais absurdos dos homens reacionários. E eles estavam de alguma forma certos e errados ao mesmo tempo.

Errados porque todo o embasamento deles pra esse tipo de reação era baseado em material promocional. Trailers, imagens de divulgação e teasers que escondiam muito bem os temas que o desenho realmente abordaria. Não tinha como, se baseando no material usando, chegar numa conclusão concreta porque não havia nada a ser concretizado.

E mesmo assim, suas baboseiras serviram como algum tipo de profecia e acabou que She-Ra realmente é um desenho sapatão com mulheres fazendo sapatisse (e uma seleção muito pequena de homens fazendo viadagem).

… Capitã Marvel?

Eu comecei dizendo que achava a She-Ra muito parecida com a Jane Foster como Thor, mas isso é só individualmente como personagem. A comparação com personagens da Marvel não para por aí, e como eu sugeri no primeiro parágrafo, o filme Capitã Marvel acabou me remetendo muito a PdP. Talvez não tanto pela personagem, mas pela forma como as duas histórias foram empacotadas de maneira semelhante ao redor de algum tipo de “feminismo enlatado”.

Okay, talvez seja injusto fazer essa comparação porque Capitã Marvel claramente se trata de um feminismo EXTREMAMENTE liberal, que finge que o empoderamento individual de uma mulher, de alguma forma, é suficiente para combater opressão. Enquanto a She-Ra durante toda a série luta pela emancipação de todas as princesas (mulheres) diante da opressão da Horda (patriarcal).

Mas tem alguma semelhança na construção da feminilidade da protagonista dentro das relações dela com outras mulheres. Principalmente no que diz respeito à lesbianidade.

Nesse filme eles fizeram a Carol Danvers (alterego da Capitã Marvel) ser a melhor amiga de Maria Rumbeau, uma personagem secundária nos quadrinhos que deve ter aparecido em uma página em toda a história da Marvel.

A relação entre essas duas personagens foi construída de uma maneira um pouco parecida com as relações que Adora tem no decorrer de PdP. O texto diz que elas são melhores amigas, mas a imagem sugere que elas são muito mais do que isso. A relação das duas acaba sendo estruturada de uma forma que faz parecer que na verdade elas formavam família com uma filha adotada ou nascida de outro casamento.

O filme também sugere, mas nunca deixa explícito, que essa união aconteceu graças as mãos de outra mulher, Dra. Wendy Larson, que trabalhava com as duas num projeto secreto.

Além disso, boa parte da identidade da Carol aconteceu por causa do seu treinamento militar entre os Kree, que no começo do filme deu pra ela uma identidade visual bastante básica e discreta (apesar do moicano ocasional), acaba servindo com uma ilustração pra opressão patriarcal, e depois no final do filme, entrando em contato com outras mulheres, ela adota uma aparência mais “feminina” mas de uma maneira bastante diferenciada do que a sociedade patriarcal costuma considerar feminino.

Mas Capitã Marvel tem um problema sério que eu acho que assola todos os filmes da Marvel. Ela tenta engajar com esses temas comuns com She-Ra e acaba não fazendo bosta nenhuma com isso, servindo pra abordar outros temas muito mais rasos como “preparação pro Ultimato” em vez de um comentário real sobre lesbianidade. E por algum motivo o desenho de criança que chama os seus vilões de “Horda do Mau” acaba parecendo mais adulto do que o filme “feminista” que fala de guerra.

Além do filme apoiar de maneira subliminar o intervencionismo americano, mas isso é assunto pra outra hora.

DreamWorks Vs. Disney

É triste, mas completamente compreensível que o desenho de criança tenha mais a dizer sobre a sociedade e meios de expressão artísticos em si próprios do que o filme de super heróis.

Ambos servem interesses capitalistas de estúdios multimilionários, mas o controle que a Disney exerce sobre Anna Boden, diretora de Capitã Marvel, é muito maior do que o controle que a DreamWorks poderia ou se quer iria querer exercer sobre Noelle Stevenson.

She-Ra tem muito menos grana envolvida, muito menos audiência, e partiu de um estúdio famoso por “fazer o que a Disney não tem coragem”.

Se você não conhece a história da DreamWorks, ela surgiu basicamente depois da negligência dos oficiais da Disney com Planeta do Tesouro, e depois surgiu como o próprio estúdio cujo único objetivo era falar mal da Disney. Daí surgiu Shrek que eu tenho certeza que todas vocês conhecem.

Recentemente a DreamWorks tem se visto numa posição interessante no mercado de animação como “o estúdio multimilionário que não tem medo de tomar riscos”. Isso claramente não é verdade, e todos os “riscos” que ela toma são extremamente calculados. She-ra e As Princesas do Poder não teria como ter acontecido sem o precedente criado de maneira subversiva pela Rebecca Sugar dentro da Warner — uma empresa notoriamente conservadora — com Steven Universo.

O fato de que a discussão sobre adaptações cinematográficas de duas super-heroínas que eu gosto acabar se voltando para a briga corporativa das duas maiores empresas de animação do mundo acaba mostrando que, por mais bonito, “empoderador” e de alguma forma até revolucionário seja o trabalho da Stevenson dentro da Marvel e da DreamWorks, ainda são obras financiadas pelo capitalismo que visam antes de tudo o lucro e a dominação do mercado midiático. A única diferença é que uma empresa trabalha apaziguando o público o máximo possível (Disney) e a outra trabalha provocando ele (DreamWorks).

Conclusão

Okay, o final desse texto pode ter parecido meio deprimente. Mas no final das contas eu adoro Capitã Marvel (a dos quadrinhos pelo menos, o filme eu acho que só é passável), e eu amo a nova She-Ra da Noelle Stevenson.

E não, eu não sou grata por empresa nenhuma, nem Marvel nem DreamWorks e muito menos Mattel, por me proporcionar essas personagens. Eu agradeço às artistas, que criam arte de verdade em vez de só fazer comerciais glorificados apesar dos modos de funcionamento capitalistas onde elas são obrigadas a trabalhar.

Então, Noelle, obrigada de todo meu coração por ter me dado as minhas lésbicas animadas favoritas, e toda sorte do mundo para que você e toda a sua equipe continue produzindo arte tão significativa apesar de todos os pesares.

Só antes de concluir pra valer eu gostaria de colocar uns tópico que eu não soube como encaixar no texto:

  • Levando em conta todas as considerações de produção, a animação de She-Ra é tipo… fenomenal?! Toda cena de ação é tão gostosa de assistir que, comparando com a parte boa dos filmes da Marvel, parece que elas foram dirigidas pelos Irmãos Russo. Mas na verdade é o trabalho de uma equipe muito apaixonada de animadoras e eu simplesmente amo esse rolê de porrada bem feita com minas por trás da porrada.
  • A primeira vez que eu ouvi falar sobre Metamodernismo foi numa palestra que a Leighton Gray deu sobre Dream Daddy na GDC de 2018, e eu recomendo muito, principalmente pra entender porque memes são considerados formas de arte metamoderna e como compreender o metamodernismo ajuda a compreender a criação de memes.

Okay, agora minha alma está limpa!

Se você gosta desse tipo de conteúdo, que tal dar uma força no Catarse ou no Paypal? Todo centavo ajuda e eu seria eternamente grata.

Mas independente do seu apoio ou não, vejo vocês logo mais com outros textos de crítica midiática anticapitalista transviada!

Amo vocês. Até a próxima.

Originally published at http://feliciagd.com on April 4, 2019.

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